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A mostrar mensagens de janeiro, 2025

Passeio com Johnny Guitar

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Vem de branco, com a calma de um cansaço repetido. Traz consigo a limpeza da lixívia que limpa um cagadouro. Fuma um cigarro, e surge a necessidade de dizer algo. Quando a rua está demasiado vazia, sente-se a claustrofobia do encontro, a obrigatoriedade do reconhecimento do desconhecido. Da boca, do peito, tirado lá do fundo, sai um irónico “Muito boas noites”. O plural não é força de expressão. É manifestação da circunstância em que se encontra. É plural, porque noites como aquela não existem no singular. São rotundas, onde se dão voltas a uma velocidade constante, encarando as mesmas saídas às mesmas horas de dias diferentes. Entra em casa, dirige-se à janela com a casualidade de quem cumpre um ritual, e observa a vizinha da frente, que num quarto bem iluminado e decorado com flores, escova os cabelos coberta da ingenuidade de um manequim de montra. Quem sabe se sofre da mesma sina que ele. Não interessa. Na vastidão de uma cidade, há espaço para a correspondência de rituais alhe...

No fundo, Bresson pintava montanhas

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«Cézanne's [ Bresson's ] still life is distinctive through its distance from every appetite but the aesthetic-contemplative. Cézanne [ Bresson ] preserves a characteristic meditativeness and detachment from desire. [...] The subject seems to have been reduced to a still life. He does not communicate with us; the features show little expression and the posture tends to be rigid. It is as if the painter has no access to the interior world of the sitter, but can only see him from outside. The rhytm of the brush stroke shifted from the great drive of impulse to the steadier flicker of sensations; the stimulus came more from outside than from within. The big forms were broken up or interrupted by little touches; composition lost its dramatic sweep.  [ Do exterior para o interior, o gado que fala morreu ]. [...] His vision is directed towards small things which break up or interrupt the large continuous forms, like the passive eye that delights in the distractions of the unexpected a...

Negação sentimental

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Na representação de um amor hesitante, é frequente enfatizar a aparente desconexão que se verifica entre o corpo e o sentimento, que tão amiúde caracteriza estes estados de espírito. Digo estado de espírito, porque nestas situações, o sentimento tem tanto de diáfano como um qualquer espectro. Vive-se na negação, e, frequentemente, anda-se na direção oposta da vontade, como se o caminho para o inevitável fado que nos confrontará passasse obrigatoriamente pelas ruas estreitas da repressão e frustração. Os recursos utilizados para a expressão desta diabólica trama são múltiplos, mas em Goodbye Again (1961) de Anatole Litvak, assumem novas e amplas dimensões. Na magnífica sequência em que Ingrid Bergman chora ao conduzir para longe do homem que ama, o alheamento do sentimento que sabe que sente é tal, que se torna confuso de onde vem aquele choro: Será que até o céu tem pena de si? E com este recurso que tem tanto de kitsch como de eficiente/tocante, marca-se o caminho tão frequenteme...

The Passageway

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  Ein Tor, Paul Klee, 1939 "And now, Major Amberson was engaged in the profoundest thinking of his life. And he realized that everything which had worried him or delighted him during this lifetime, all his buying and building and trading and banking, that it was all trifling and waste - beside what concerned him now. For the Major knew now that he had to plan how to enter an unknown country, where he was not even sure of being recognized as an Amberson."

Poeira

Sempre achei muito bonita a poeira nos filmes do John Ford, ou melhor, as nuvens de poeira escavadas pelos cavalos em correria. No western, este género do plano geral, parece tudo geológico, sedimentar. As personagens andam, vivem e sofrem as suas paixões quase sempre em cima duma grande paisagem deserta que parece resultado de estratos geológicos uns em cima dos outros, acumulados e sedimentados ao longo dos séculos. Camadas e camadas de história*, com uma potência imanente que pode ser revelada às vezes de forma tão simples como mostrá-la por mediante de uma panorâmica comedida (não admira os Straub-Huillet gostarem tanto do Ford). Estas nuvens erguidas pelas ferraduras parecem agrupamentos das partículas da camada mais à superfície, mais recente da História, exalações físicas despertadas pelo movimento. Se calhar por isso é que gosto e penso tanto naqueles planos contra-picados dos filmes do Ford em que os cavelos nos atropelam e olhamos para o céu através destas nuvens**. Nos segun...

Wiseman, o fatalista

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Não é a realidade filmada que espanta, é a associação de imagens, a montagem-critério, a dedicação à composição antagónica derivada da associação de momentos que o nosso lado mais voyeur nunca escolheria acompanhar. Wiseman, criador de um tempo só seu, termina da forma mais assombrosa possível: Uma missa bizarra, planos de casas tão opulentes de simples, e 4 planos brevíssimos do cemitério. Porque a morte é um flash, no meio de uma sopa de banalidades a que se tem vindo a chamar de “vida”.   - João

Sobre Les Mauvaises Recontres de Alexandre Astruc

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Sobre Les Mauvaises Rencontres (1955), dizia Rivette que se tratava de um filme de jovens, feito para jovens, por um jovem. Olhando para o paradigma atual, a juventude abandonou esta linguagem, e retrospetivamente, concluímos se calhar, que falava de uma juventude mais poética, onde o significado de tudo está nas pequenas subtilezas e poder encantatório de cada movimento.  Aos olhos de um jovem atual (penso ainda poder afirmar com segurança pertencer a esse grupo), Astruc marca pela diferença. Pela maturidade que aparenta encarnar, pelo domínio e controlo de tudo o que faz, que facilmente se pode considerar como estando associado a um rigor hoje estrangeiro. No seu famoso manifesto, Astruc falava da certeza da democratização da imagem em movimento, da proliferação dos pequenos formatos. Nesse sentido, em pouco ou nada falhou. No entanto, as consequências desse caminho, foram a inevitável insignificância associada a 90% (número otimista) do que se filma. Vivem-se tempos onde a refle...

'cabou-se!

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«-- It'll be a nice quiet town after you leave, Cole.   -- How do you know I'm leaving?   -- We just don't need your kind around.» Um sorriso e um lamento.  O mesmo luto. Hawks, com desembaraço; Ford, com amargura.  É assim que cada um se despede do Velho Oeste. O mundo já se fechava para Wayne e companhia quando suas excelências, John e Howard, meteram os papéis. A confiança jucunda de Hawks não nega o fim, mas Ford, como sempre, é mais áspero diante do verão que se apagava, do tempo que se domesticava num mundo arrefecido, onde Deus já não era o deles. Não sei se a muleta e o riso de Wayne ecoam num caixão, ou se o caixão de Wayne guarda um sorriso-muleta.  Por vezes, a crença e a angústia confundem-se. «Correm turvas as águas deste rio, que as do Céu e as do monte as enturbaram; os campos florecidos se secaram, intratável se fez o vale, e frio. Passou o verão, passou o ardente estio, uas cousas por outras se trocaram; os fementidos Fados já deixaram do...

Algumas razões por eu pensar tanto no Duel in the Sun

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Porque o Vidor entendeu que às vezes o amor não é só fou , pode também ser completamente doente – e que isto é amor a sério, tanto como qualquer outro mais sereno. Porque o filme inteiro se prostra sob o signo do sol. Aquele sol completamente atordoador que te faz sentir como se tivesses sopa quente dentro da cabeça, que te faz ver tudo através duma cortina transparente que distorce a paisagem às ondinhas. Este fenómeno aqui visto em FLASHES de luz e calor, assemelhando-se àquelas técnicas de tortura ou de programação mental em que te põem em frente da cara uma lanterna branca a piscar intermitente e incessantemente. Porque o Vidor sabe que o sangue pode ser, e muitas vezes é, como a geleia: vermelho, grosso, peganhento, doce e cheio de grumos. Mas quente, a correr-te pelas veias e a dar-te a vida e a fazer-te mexer. Porque percebe a teia em filigrana do amor, onde existe quem amamos, quem nos ama, quem achamos que nos ama, quem achamos que devemos amar, quem nos forçamos a amar,...

Filmes de 2024 - Vasco

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(este filme aparece mais tarde na publicação, mas escolho-o aqui para sinedocar o ano para encorajar-nos a continuar a tentar encontrar algo que cintile em todos os futuros anos desta rançosa doença que é a cinefilia de que já não escapamos) Para facilitar a vida, não tanto ao leitor, mas mais a mim mesmo, vou dividir esta retrospetiva em três pequenas listas - - - Os dois melhores filmes que vi este ano : filmes em que penso recorrentemente, que consigo dizer facilmente que são dos meus favoritos que já vi na minha vida. Nestes nem deixo legenda porque de momento pedem-me para me calar. Escreverei algo sobre eles eventualmente, mas terá de ser num fomato mais extenso do que uma legenda curta (quando me sentir capaz de aprimorar o que agora seria só verborreia). Ruby Gentry , (1952), King Vidor Corps à Coeur , (1979), Paul Vecchiali - - - Seis filmes de anos passados vistos pela primeira vez este ano: -7 Women , (1966), John Ford Vi duas vezes em Dezembro. Continuo ofendidíssimo pelo f...