Passeio com Johnny Guitar


Vem de branco, com a calma de um cansaço repetido. Traz consigo a limpeza da lixívia que limpa um cagadouro. Fuma um cigarro, e surge a necessidade de dizer algo. Quando a rua está demasiado vazia, sente-se a claustrofobia do encontro, a obrigatoriedade do reconhecimento do desconhecido.

Da boca, do peito, tirado lá do fundo, sai um irónico “Muito boas noites”. O plural não é força de expressão. É manifestação da circunstância em que se encontra. É plural, porque noites como aquela não existem no singular. São rotundas, onde se dão voltas a uma velocidade constante, encarando as mesmas saídas às mesmas horas de dias diferentes.

Entra em casa, dirige-se à janela com a casualidade de quem cumpre um ritual, e observa a vizinha da frente, que num quarto bem iluminado e decorado com flores, escova os cabelos coberta da ingenuidade de um manequim de montra. Quem sabe se sofre da mesma sina que ele. Não interessa. Na vastidão de uma cidade, há espaço para a correspondência de rituais alheios. Acende um cigarro, protegendo o fogo com o casaco lixiviado. De lado, fica o isqueiro a arder, durante a duração desta missa. Estranha procissão aquela. Fecha-se a janela. Cessa o interesse. “Muito boas noites”, repete-se telepaticamente.

Muda a hora, muda a roupa, ainda que branca, a brancura da manhã é lá refletida. Passou-se a noite em branco, em volta do fumo branco de canudos de papel branco; É um filme branco. O trabalho é perturbado. Cantarola-se uma melodia, e vai-se à janela. Quem diria que o dia avançou sem ele. Esconde-se dentro de casa, mas a câmara avança, naquele que é um dos travellings mais totais do cinema português. Um travelling de som e de imagem. Evidencia-se o degradé que cabe entre a vida exterior e a interior, sob a forma de gritos de amanhecer; o ruído do (re)começo.

Fim

E isto bastaria para falarmos daquele que seria um dos melhores momentos de melancolia do cinema português; Um dos maiores retratos do confronto entre o homem e a cidade, entre o homem e ele mesmo, na solidão de uma noite em branco.

Mas não foi isto que nos foi oferecido. Foi-nos forçado outro encontro. O encontro entre tudo isto que se descreveu, e a inolvidável força daquele assombroso diálogo. João de Deus sonha acordado com Nicholas Ray. O peso do silêncio é povoado pela repetição daquele diálogo onde vinga o poder do esquecimento forçado, do desencontro fugaz. Repetição industrial, engrenagem domótica, onde mesmo com a mudança de roupa não se muda o pensamento. Sentado à frente do microscópio, este homem de ciência é possuído pelo intensificar da faixa musical. Vai à janela, e volta para dentro: Sabe que ainda não é hoje que se livra daquele fardo.

E agora sim,

Fim.



- João

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Efemeridade do documentário

Alma Minha

Sr. Ford