O Manquejar de Ema

A mais bela cena de Vale Abraão é a última. A mais alta num filme de cumes que, ainda assim, culmina numa queda. Falo do momento em que Ema levita antes de tombar no rio. Levitar e tombar só podem conviver plenamente num filme de Oliveira: um cinema de contrapontos, onde se entrelaçam o carnal e o sagrado, o sisudo e o galhofeiro, o comezinho e o solene.

A sua morte é anunciada no último plano pedregoso do vale do Douro, quando se ouve um apito infernal que anuncia o fim. Escuta-se uma das sete trombetas, uma cornetada que emerge do ventre daquelas rochas. Pouco depois, o mesmo plano revela, ou não, que essa trombeta leteia talvez seja a buzina de um comboio da CP que atravessa a linha entre os rochedos do vale. Não creio que seja apenas o apito do comboio que se ouve. Esse som que não vejo vem do fundo do Douro.


No laranjal da quinta do Vesúvio, Ema, essa mulher-menina vestida de branco, parece levitar enquanto caminha para a morte. A levitação nasce do seu manquejar. É por ser manca que o seu corpo parece soluçar no ar; esse andar irregular, essa hesitação do corpo, tornam-se graça. Um pairar gracioso que contraria a gravidade. Não é a câmara que baloiça, mas o soluçar da perna que ondula o movimento. O caminhar imperfeito permite-lhe planar. É na falha que irrompe algo a mais.  

Há uma frase no filme (que ainda não consegui reencontrar) em que se diz algo como: “Numa beleza tão extrema, como a de um génio, o destino tem de deixar uma marca de corrupção.” O manquejar de Ema é um sinal de que aquela beleza imaculada carrega uma sombra. Porque o que é demasiado belo nunca pode ser apenas belo. “Não basta a beleza, sempre tão discutível na mulher — e a Ema manqueja”, diz-nos Maria do Loreto. A beleza, sim, pode ser contestada. Mas a graça não. E Ema, na sua gravidade suspensa, no peso que a leva a voar, possui uma graça nascida da carne imperfeita. O que a eleva é o que coxeia na terra. As suas asas são a perna manca.

É essa rachadura que a devolve ao rio: é o tropeço de um corpo tão leve e desejado que leva Ema a pôr o pé na tábua partida. Oliveira sempre gostou de ver anjos feridos a cair, basta lembrar Mariana, que voa para o oceano em Amor de Perdição

A morte de Ema é mais uma flutuação, uma suspensão, do que uma queda ou um mergulho; um regresso ao lugar a que pertence: «Não reparam que olho com os olhos cheios de água / quem só mais do que eu pertence ao mar [Rio Douro]», disse-nos Ruy Belo. 

Haverá olhos mais cheios de água do que os azuis de Ema? Ela pertence ao Douro — é uma ninfa do Douro —, outra explicação possível para a sua inépcia no andar: talvez venha de um lugar onde não se usam pernas. E tal como Emma, a de Flaubert, também a de Oliveira se suicida. Mas, ao contrário da outra, a sua morte não é apenas um tombo. Não há veneno nem histeria. Há um movimento oblíquo. Uma queda que flutua, que hesita. Uma queda que manqueja.



«Moradores da terra fogo ou ar

sabei que o solo sólido da terra foi apenas para mim

insegurança oscilação vertigem

e que em verdade agora mais do que acabar

o que fiz foi voltar à minha origem»

Ruy Belo


Rodrigo


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