O desejo de Roberto Gavaldón
A palavra DESEJO, tem origem na palavra latina DESIDARE, que por sua vez significa “esperar por, desejar, ter expectativa, exigir”. Do ponto de vista etimológico, especula-se que a palavra possa ser proveniente da expressão DE SIDERE, cujo significado é “dos astros, a partir dos astros”, estando o seu sentido original associado à ideia de esperar por algo que as estrelas trarão.
Nesta viagem de vocábulos, impressiona acima de tudo a
aparente conexão entre o fatalismo, com toda a sua inevitabilidade e
pluritemporalidade, e a vontade.
Desejar é reconhecer a falta. Mais, é se calhar reconhecer a
falta na posse alheia. É olhar o mundo, e reconhecer como objetivo uma qualquer
materialidade que julgamos conhecer. No que toca ao fatalismo, não deixa de ser
notável a constatação de que desejar é algo que acontece no presente, tendo por
espaço de concretização o futuro, havendo um desfasamento muito evidente entre
o sentimento e a sua consumação. Será essa a razão de tanta vez o desejo estar
associado a uma qualquer forma de corrupção? Querer agora, para ter depois, é
planear, é assumir a conspiração como forma de premeditadamente algo conseguir.
No cinema de Roberto Gavaldón, o desejo desempenha de forma
aparentemente transversal um papel preponderante. Mudem-se as roupagens, cenários
ou personagens tipo, e o desejo enquanto força motriz da trama individual surge
sempre no éter da ação. Fala-se de um desejo que se confunde com cobiça,
motivado frequentemente pela inveja e o endeusamento de algo ou alguém; um
veneno que leva qualquer um a assumir compromissos inadiáveis com um julgamento,
seja ele proveniente do interior ou da pólis, tenha ela a dimensão que tenha.
As personagens de Gavaldón acabam inevitavelmente traídas
pelo exercício comparativista a que a busca pela felicidade e o desejo de
mudança muitas vezes conduzem.
Em Deseada de 1951, Dolores del Río vive o dilema formado entre
o compromisso que assumiu para com o futuro da irmã, e o desejo que a consome
de possuir o seu futuro cunhado. Esta é outra das características das tramas de
Gavaldón, frequentemente povoadas por gente que procura a repressão e opta por sofrer
no silêncio em prol da preservação de uma estrutura familiar habitualmente desequilibrada.
Deseada descobre-se merecedora da felicidade no incoveniente momento em que a
sua irmã tem a oportunidade de consumar o seu futuro. Conhece o desejo que a
batizou na concretização da missão a que se propôs dedicar. O resultado é uma
trama complexa, filmada entre pirâmides de pedra alumiadas pela luz de uma lua
solar, e um amor que se sabe corrupto, que acontece na sombra verdadeira de uma
profecia antiga.
Por entre estas desventuras, penetra frequentemente alguma forma
de superstição ou sacralidade. Em Rayando el Sol de 1946, a analepse que Pedro
encarna acontece no momento em que se ajoelha perante um santuário dedicado à Virgem,
Virgem essa que povoa o passado e a quem se pede perdão e redenção para o
futuro. Ao mesmo tempo, coexiste com a religião a superstição popular, naquele
fatídico momento no dia do casamento, recordado por Pedro após ter cumprido
o crime que marcará o seu destino: No ato de desejar, há espaço para Deus e
para o Homem.
Neste filme complexo, protagonizado por dois amigos que
partilham o crescimento e o objeto do seu amor (o objeto do seu desejo),
descobre-se a muito custo que ter o que se quer pode implicar perder o que se
desprezou, e num ato não ponderado, pouco importa o passado, compromete-se o
presente, e desiste-se do futuro.
Importa recordar a beleza de um dos últimos planos, onde Pedro
depois de confessar o seu crime a um representante de Deus na Terra, desaparece
no mais negro dos negros, escolhendo a reclusão enquanto penitência para o seu
abominável desvio.
“Que te perdoe a Virgem, Pedro, porque a justiça dos homens
será implacável”, dizem-lhe.
Em Dias de Otoño de 1963, Luísa, jovem orfã vinda do
interior, encontra propósito numa pastelaria requintada, onde os seus dotes de criadora
de casamentos de pão de ló açucarado se provam úteis. Entre chantilly e
bonecos de pasta de açúcar, vão se formando e alimentando os desejos de uma vida
conjugal. A vocação para a maternidade revela-se cedo no filme, quando num
plano discreto passado no dia 10 de Maio (dia da mãe no México), Luísa alimenta
uma pequena multidão de crianças nas traseiras da pastelaria, com o
consentimento silencioso do seu patrão e pretendente.
Esta mulher resguardada, apaixona-se em silêncio, por um
homem aparentemente correto, que a abandona no dia do suposto casamento,
naquela que é certamente uma das sequências mais solenes do melodrama
internacional. Luísa chega à igreja de táxi, alheada de tudo o que não se passa
ali, constatando que o dia do seu casamento é na verdade o dia de batismo de
uma criança que não é sua.
Não sei que diga, não sei que escreva, e, portanto, nada
faço. Rendo-me.
Menção honrosa para La Otra de 1946, onde a fatal Dolores del
Río cobiça a vida da irmã recentemente viúva, acreditando que na riqueza material,
incompatível com a riqueza espiritual, pode estar a chave para um futuro
equilibrado, fruto de um ato impulsivo e bruto, como uma piñata que se parte numa
festa popular.
No final, perde-se o que se tinha, e abandona-se o que o
desejo conquistou, naquele plano assombrado naquela prisão quase industrial,
onde as grades parecem chegar ao céu.
Roberto Gavaldón, astrólogo de vocação, passeou-se pela
cinemateca portuguesa em Setembro de 2025, vindo de DE SIDERE, presenteando os
presentes com a anatomia do desejo num ecrã 4:3.
- João
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