Encontros de Cinema do Fundão: Uma retroanálise

Quarta feira, iniciam-se as hostes com sedimentação nas cadeiras da tasca da estação. Degustam-se sandes de bacalhau, omeletes e gelados Olá, tudo regado com o melhor que a destilaria nacional tem para oferecer. Passa o tempo, ocorre a amigável expulsão, e sobrevive uma modesta conta de cerca de 7 dezenas de divisas. O resultado do beberete fatal, foi uma tarde bem passada, produtiva, ma non troppo. Está agora em casa o bicho do mato da Barata Salgueiro, que nesta incursão beirã busca sol, cinema, e um bem-haja honesto.

Turva correu a noite, ao som de música de homenagem e conversas intensas. Os interlocutores vestem as suas entranhas num honesto bate-boca, onde o clube a defender é por todos partilhado.

Dorme-se sobre o assunto, pois até o físico tem limites. Lateja a cabeça ao som das badaladas semi-horárias que se fazem ouvir em todo lado. O calor faz transpirar os erros da madrugada anterior. Rasgam-se as vestes: Somos homens novos. Segue-se um almoço atribulado, comprometido por uma barriga que resiste a ser cheia.

Com olhos na razão daquela epopeia, dirigem-se os presentes em procissão à sala da moagem, onde é apresentada a custódia do cinema de ficção científica nacional: A Força do Atrito de Pedro Ruivo. Filme desprezado por aqueles que gostam de desprezar coisas. Encontre-se na palavra “coisas” a abrangência total que pode representar. Há gente que odeia sol, gente que odeia cães, crianças e até a paz. Quem odeia o filme de Pedro Ruivo odeia por odiar. A força do atrito, com todas as suas fragilidades, não deixa de ser um exemplo competente da ambição que a muitos falta (ou nunca contemplaram ser possível ter). Apesar de se situar noutro tempo, é bastante do tempo em que foi feito, não procurando fugir às problemáticas e linguagem que eram suas vizinhas.

Segue-se a conversa, fala-se de justos e injustos, cães e gatos, polícias e ladrões. Há uma dimensão sopeira do cinema nacional que resiste a ser aniquilada. Pedro Ruivo carrega em si os nefastos efeitos desta maneira de existir.

Carta branca ao realizador, incursão no cinema amaricano. Gerry de Gus Van Sant é um filme rico na pobreza, interessante no desinteressante. Grande no pequeno. Um filme cheio de nada, um nada que poucos conseguem retratar.

Nova ida à tasca da estação. Entra-se de braços no ar, com honesto sentido de culpa, mas orgulho em perceber que no Fundão boa disposição ainda não é crime.

Segue-se Hellzapoppin, parada de malucos. Um filme hiperativo, que arranca uma gargalhada até da mais sacra monja de clausura. Salvas de palmas em uníssono. Viva o entretenimento, longa vida à barbárie.

Sexta feira, os protagonistas dos crimes da noite anterior ganham a clarividência de um cientista premiado. Parte-se em busca de chicha da boa. Encontra-se consolo na febra da Ti Lucília, rainha anti-iconoclasta do minimalismo culinário. Tira-se a barriga de misérias, contemplando com amargo ressentimento as ébrias incursões das madrugadas vespertinas.

As próximas 24 horas são dedicadas ao cinema de Enzo Castellari.

Castellari, criador de um cinema de causa-efeito, profundamente reativo, consistente na representação de um idealismo individualista, um quanto (talvez) descrente na sociedade enquanto bando de hienas elevadas a sumidades. Mostra-se devoto da nossa senhora da montagem, recurso indispensável à criação da causa e representação do efeito que o seu cinema tão bem encarna.

Sai desprezada a obra de Pablo García Canga, em prol de um Fundão que persiste em convocar os presentes para uma noite de convívio desregrado e banhos de rio.

Fazem-se as pazes já em casa, na cinemateca, onde dia 4 foi replicada a sessão de curtas do realizador. O embate é frontal, as consequências desastrosas. Ficar indiferente a uma tão justa amostra de sentimento solitário, é fazer parte do clube que renega o honesto em prol do espetáculo. É ignorar por completo a magnitude que pode atingir um cinema muito consciente dos seus meios de produção, um cinema que dá sem exigir, um cinema mais verdadeiro do que connosco somos na grande generalidade dos dias. A trilogia do telemóvel* é o último reduto da plasticidade da palavra cinematográfica, do fingimento da ação, e da busca altruísta pela reação do espectador, espectador esse que é talvez o verdadeiro interlocutor daqueles sofridos “monólogos”. Um cinema feito para ser visto na intimidade, trata aquilo que todos tememos: Os recantos da tristeza que atropelamos na esperança de a vermos esquecida. 

Menção honrosa a Manuel da Silva Ramos, que numa tirada de génio, apresentou ao público presente a cura para a distopia: A autenticidade. Um arauto sem medo da palavra, que leu um justo texto que ecoa na memória dos presentes até ao fim do som. Manifesto aqui o interesse em esse texto revisitar. Será que me voltarei a deparar com ele?

Em jeito de agradecimento final, deixo um bem-haja ao Mário Fernandes, que num gesto de tão amistosa disponibilidade, se prontificou a acolher a redação deste periódico cibernético num palácio minimalista na Rua da Cale nº 31.

E porque nem tudo são rosas ou flores de cerejeira, fica o apelo ao reforço da climatização durante as sessões. Em terra tão soalheira, fã de cinema tão quente, a ajuda da engrenagem é bem-vinda.

 

Fundão, terra de cer(v)eja. Por lá, nem um caroço mordisquei. Foram dias exigentes, e, no entanto, fleumáticos. Quem sabe se lá voltarei, na esperança de ver na beira algo que se calhar falta em Lisboa: Amor à camisola.

 

 

 

*Perdoem-me



- J

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