Miguel Gomes, ou a apologia do particular

 

Num país onde é proclamada (e provavelmente com razão) a retórica de que o cinema é coxo, institucionalmente ignorado, reduzido a um número de realizadores e obras que não superam os números de produção daquilo que se faz na Galiza, e onde, para o público comercial, a frase "é um filme português" é sinónimo de um mostrengo camoniano do tamanho e feiura de um buraco na calçada, qualquer vitória internacional atingida por um dos nossos, é vivida de forma exacerbadamente viva e inflamada. É bonito ver essa união, como quem abraça um desconhecido no rescaldo de uma vitória da seleção de futebol. Mas não deixa de ser curioso que a discussão sobre o objeto vitorioso passe para o plano secundário, sendo vista de forma unilateral, tabu, ou até mesmo não desejada. Analisa-se a vitória, vitória essa que nunca se esperou, ou em quem ninguém apostava, e deixamos de lado a vontade, ou sequer a circunstancialidade que possa propiciar a análise livre desse mesmo objeto.

Criticar/analisar um filme que se enquadra nesta moldura descrita, não é ser anti-prémio, anti-nação, anti-sucesso ou anti-sistema. É ser pro-cinema, pro-ideias e até (para quem não estava até agora a calcular onde toda esta cortesia preambular ia dar) pro-Miguel Gomes.

Numa entrevista concedida em 1970 aos cahiers du cinema por Jean Marie Straub e Daniele Huillet, é dito por Straub que o esperanto é o sonho burguês. Que ser internacional é poder ser vendido em todo o lado, não que ser internacional seja intrinsecamente mau, mas que nada nasce internacional: torna-se. No fundo, nada nasce geral. Tudo nasce particular. E a quem cabe o juízo da globalização cinematográfica? Quem abre as fronteiras para um cinema não naturalizado? Nos dias que correm, os festivais aparentam ter esse poder. Há muito que se pode opinar sobre essa posição, posição essa criada pelo próprio conceito de festival, sendo que muitos se auto-intitulam de "internacionais" e de "cinema", parecendo estar alheados da contradição que encarnam, juntando estas duas palavras tão antagónicas aos olhos de Straub separadas por um mero "de". Mas entrando no Grand Tour, com a disposição lixiviada pela evidência straubiana, torna-se evidente um dos problemas do filme: Parte de um deslumbramento internacional, com o que vem de fora, olhado por alguém que aparenta não desejar estar em lado nenhum. Miguel Gomes tentou ser fluente em esperanto, esquecendo que o esperanto é uma língua morta. E a língua que emprega, é maltratada, desconhecida aos ouvidos de quem a fala. Dizia Bénard da Costa que os diálogos de Benilde ou a virgem mãe eram diálogos impossíveis. Que todos sabiam mais do que diziam, e se me é permitido acrescentar, menos Oliveira. O domínio oliveiriano da palavra é se calhar das suas maiores conquistas. E é uma conquista, que, no seu caso, começou no mudo. Em Miguel Gomes, falamos também de impossibilidade. Mas por razões distintas. A palavra neste filme é tratada como tudo o resto: como sendo um artifício, no mais puro sentido da palavra. O riso repetitivo de Crista Alfaiate, o homem que se levanta subitamente para cantar ópera à refeição, 3 minutos depois de ter sido mencionado que era cantor de ópera, e ter permanecido silencioso até irromper pelo plano, furando os ouvidos de quem na sala se senta da maneira mais evidente possível. Estes dois acontecimentos que coexistem no mesmo filme, são exemplos de descrença no espectador, de descrença na realização, de descrença no poder não biónico de uma interpretação não internacional do que está a ser feito, são exemplos de descrença no particular de que Straub falava, porque procuram impressionar o espectador da mesma maneira que os chavões de filmes como o Leão da estrela, deixando de lado qualquer ideia de cinema, e procurando seguir o caminho fácil: O da feira popular, pedindo à Nossa Senhora da Produção que o espectador não agarre no telemóvel na tentação de encontrar mais dopamina num outro sítio qualquer.

E quando se vive num carrossel, torce-se o nariz quando aparece de soslaio uma intenção mais séria. Minutos depois de andarmos de carrinho de choque, Miguel Gomes mostra-nos pelo canto do olho (e mais do que uma vez) uma série de interpretações de espetáculos de marionetas. Será este devaneio sobre a pré imagem sério? No meio das boas intenções, de que este filme está cheio, impera o olhar de turista sobre o elevador da glória que é o oriente.

E faz-se um filme, esquecendo-se o peso e responsabilidade da imagem filmada. Existem magnum opus mais curtos que os créditos iniciais. E existem maneiras mais eficientes de se dizer alguma coisa do que querer dizer tudo, mas escrever mal, como quem pinta uma parede e a ela se encosta enquanto a tinta está fresca.

A única censura de um realizador, deve ser proveniente do seu interior. Quem tudo quer, nada alcança, e Miguel Gomes derreteu na tentativa. Na tentativa de fazer um filme de truques. Uma raspadinha de clichés, uma ode à cinefilia de reformado.

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