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O Manquejar de Ema

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A mais bela cena de Vale Abraão é a última. A mais alta num filme de cumes que, ainda assim, culmina numa queda. Falo do momento em que Ema levita antes de tombar no rio. Levitar e tombar só podem conviver plenamente num filme de Oliveira: um cinema de contrapontos, onde se entrelaçam o carnal e o sagrado, o sisudo e o galhofeiro, o comezinho e o solene. A sua morte é anunciada no último plano pedregoso do vale do Douro, quando se ouve um apito infernal que anuncia o fim. Escuta-se uma das sete trombetas, uma cornetada que emerge do ventre daquelas rochas. Pouco depois, o mesmo plano revela, ou não, que essa trombeta leteia talvez seja a buzina de um comboio da CP que atravessa a linha entre os rochedos do vale. Não creio que seja apenas o apito do comboio que se ouve. Esse som que não vejo vem do fundo do Douro. No laranjal da quinta do Vesúvio, Ema, essa mulher-menina vestida de branco, parece levitar enquanto caminha para a morte. A levitação nasce do seu manquejar. É por ser m...

Encontros de Cinema do Fundão: Uma retroanálise

Quarta feira, iniciam-se as hostes com sedimentação nas cadeiras da tasca da estação. Degustam-se sandes de bacalhau, omeletes e gelados Olá, tudo regado com o melhor que a destilaria nacional tem para oferecer. Passa o tempo, ocorre a amigável expulsão, e sobrevive uma modesta conta de cerca de 7 dezenas de divisas. O resultado do beberete fatal, foi uma tarde bem passada, produtiva, ma non troppo . Está agora em casa o bicho do mato da Barata Salgueiro, que nesta incursão beirã busca sol, cinema, e um bem-haja honesto. Turva correu a noite, ao som de música de homenagem e conversas intensas. Os interlocutores vestem as suas entranhas num honesto bate-boca, onde o clube a defender é por todos partilhado. Dorme-se sobre o assunto, pois até o físico tem limites. Lateja a cabeça ao som das badaladas semi-horárias que se fazem ouvir em todo lado. O calor faz transpirar os erros da madrugada anterior. Rasgam-se as vestes: Somos homens novos. Segue-se um almoço atribulado, comprometido ...

Cinema plastificado

No final do século passado, e início deste, experienciou-se a hegemonia do plástico, praticada com entusiasmo por todos os seus contemporâneos. Incluiu-se plástico na roupa, sendo que se plastificavam manuais escolares, bilhetes de identidade, boletins de vacinas, cadernetas de cromos e peças de mobiliário com uma vontade inigualável. Por absurdo, creio até que se fosse a população convocada a votar por referendo a plastificação do padrão dos descobrimentos, com o intuito de proteger aquele mural enfadonho das intempéries, que a iniciativa seria aprovada, sendo o ato replicado no património que se julga digno de preservação, desde o arco da Rua Augusta, à pantufa da Serra da Estrela. Plastificar é cuidar. É por intermédio da criação de uma carapaça de petróleo, prolongar a vida daquilo que se estima, ampliando a sua resistência à ação dos fenómenos naturais em mais de 500 anos. Nos dias que correm, o paradigma é diverso, tendo a redução carbónica contribuído para o cavalgar da aniq...

As mãos e o Godard

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A propósito dos últimos filmes do Godard: Não são bem guiões ou « scénarios », nem storyboards, nem estudos preparatórios, mas uma fusão de tudo isso — um caderno-canivete —, a abstracção da própria ferramenta.  São imagens fixas que apontam para o movimento futuro, uma montagem que se desdobra folha a folha. Neste hábito artesanal, o maître-artisan  tacteava filmes, estudava continuamente uma forma de arte, esboçando exercícios circunstanciais sobre fragmentos da história; a sua e a dos outros. Vemos uma espécie de workshop : filma-se o personagem  principal, o mestre Jean-Luc, à mesa do seu estúdio, com um scrapbook repleto de  imagens e palavras, dirigindo um novo projecto, explicando, página a página, aos  habituais colaboradores, Jean-Paul Battagia e Fabrice Aragno, como deveriam finalizar  um filme que, supostamente, seria Scénarios .  O tom descomprometido, a forma como  afirma repetidamente que não sabe o significado de certos planos ou q...

Peter Ibbetson

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Provas de vida, constantemente separadas pela verticalidade de um qualquer gradeamento, onde a frieza do ferro protagoniza o espaço que o tempo decidiu impor entre estes dois seres. Resta viver subjugado à nostalgia, inútil sentimento, que num atraso constante enche a eternidade de uma tão densa e palpável poeira. Peter Ibbetson, re-batizado no rescaldo de um desgosto, encarnou um coma telepático, escolhendo a sincronia de uma vida de olhos fechados, à nulidade das regras de quem julga tê-los abertos.

Assim seja

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Ao ver 3 Godfathers na 5 de Outubro, recordei e reforcei uma das ideias que mais me entusiasma no modus operandi fordiano: a sua capacidade sublime de colocar o mais ausente dos espectadores a ouvir passagem bíblicas. Recordo com clareza a procissão e missa fúnebre de The Sun Shines Bright (a revisitar), onde naquele momento criado, se julgam os justos e injustos através do pesar que demonstram pela falecida, onde se sente o peso da palavra, a consternação imposta por Ford num ritual tão humano, forçando um momento de consciência até em qualquer não batizado. Em 3 Godfathers, impera um outro tipo de religiosidade: uma religiosidade quase física, toldada pela conversão de um ladrão descrente, naquele momento transcendental onde, sem dar por isso, ele próprio serve de acólito silencioso (como todos os acólitos), na cerimónia fúnebre do seu subordinado. No confronto concreto com a provação que lhe é imposta, dá-se o contacto com o mito. Por coincidência, não querendo forçar uma relaç...