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Encontros de Cinema do Fundão: Uma retroanálise

Quarta feira, iniciam-se as hostes com sedimentação nas cadeiras da tasca da estação. Degustam-se sandes de bacalhau, omeletes e gelados Olá, tudo regado com o melhor que a destilaria nacional tem para oferecer. Passa o tempo, ocorre a amigável expulsão, e sobrevive uma modesta conta de cerca de 7 dezenas de divisas. O resultado do beberete fatal, foi uma tarde bem passada, produtiva, ma non troppo . Está agora em casa o bicho do mato da Barata Salgueiro, que nesta incursão beirã busca sol, cinema, e um bem-haja honesto. Turva correu a noite, ao som de música de homenagem e conversas intensas. Os interlocutores vestem as suas entranhas num honesto bate-boca, onde o clube a defender é por todos partilhado. Dorme-se sobre o assunto, pois até o físico tem limites. Lateja a cabeça ao som das badaladas semi-horárias que se fazem ouvir em todo lado. O calor faz transpirar os erros da madrugada anterior. Rasgam-se as vestes: Somos homens novos. Segue-se um almoço atribulado, comprometido ...

Cinema plastificado

No final do século passado, e início deste, experienciou-se a hegemonia do plástico, praticada com entusiasmo por todos os seus contemporâneos. Incluiu-se plástico na roupa, sendo que se plastificavam manuais escolares, bilhetes de identidade, boletins de vacinas, cadernetas de cromos e peças de mobiliário com uma vontade inigualável. Por absurdo, creio até que se fosse a população convocada a votar por referendo a plastificação do padrão dos descobrimentos, com o intuito de proteger aquele mural enfadonho das intempéries, que a iniciativa seria aprovada, sendo o ato replicado no património que se julga digno de preservação, desde o arco da Rua Augusta, à pantufa da Serra da Estrela. Plastificar é cuidar. É por intermédio da criação de uma carapaça de petróleo, prolongar a vida daquilo que se estima, ampliando a sua resistência à ação dos fenómenos naturais em mais de 500 anos. Nos dias que correm, o paradigma é diverso, tendo a redução carbónica contribuído para o cavalgar da aniq...

As mãos e o Godard

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A propósito dos últimos filmes do Godard: Não são bem guiões ou « scénarios », nem storyboards, nem estudos preparatórios, mas uma fusão de tudo isso — um caderno-canivete —, a abstracção da própria ferramenta.  São imagens fixas que apontam para o movimento futuro, uma montagem que se desdobra folha a folha. Neste hábito artesanal, o maître-artisan  tacteava filmes, estudava continuamente uma forma de arte, esboçando exercícios circunstanciais sobre fragmentos da história; a sua e a dos outros. Vemos uma espécie de workshop : filma-se o personagem  principal, o mestre Jean-Luc, à mesa do seu estúdio, com um scrapbook repleto de  imagens e palavras, dirigindo um novo projecto, explicando, página a página, aos  habituais colaboradores, Jean-Paul Battagia e Fabrice Aragno, como deveriam finalizar  um filme que, supostamente, seria Scénarios .  O tom descomprometido, a forma como  afirma repetidamente que não sabe o significado de certos planos ou q...

Peter Ibbetson

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Provas de vida, constantemente separadas pela verticalidade de um qualquer gradeamento, onde a frieza do ferro protagoniza o espaço que o tempo decidiu impor entre estes dois seres. Resta viver subjugado à nostalgia, inútil sentimento, que num atraso constante enche a eternidade de uma tão densa e palpável poeira. Peter Ibbetson, re-batizado no rescaldo de um desgosto, encarnou um coma telepático, escolhendo a sincronia de uma vida de olhos fechados, à nulidade das regras de quem julga tê-los abertos.

Assim seja

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Ao ver 3 Godfathers na 5 de Outubro, recordei e reforcei uma das ideias que mais me entusiasma no modus operandi fordiano: a sua capacidade sublime de colocar o mais ausente dos espectadores a ouvir passagem bíblicas. Recordo com clareza a procissão e missa fúnebre de The Sun Shines Bright (a revisitar), onde naquele momento criado, se julgam os justos e injustos através do pesar que demonstram pela falecida, onde se sente o peso da palavra, a consternação imposta por Ford num ritual tão humano, forçando um momento de consciência até em qualquer não batizado. Em 3 Godfathers, impera um outro tipo de religiosidade: uma religiosidade quase física, toldada pela conversão de um ladrão descrente, naquele momento transcendental onde, sem dar por isso, ele próprio serve de acólito silencioso (como todos os acólitos), na cerimónia fúnebre do seu subordinado. No confronto concreto com a provação que lhe é imposta, dá-se o contacto com o mito. Por coincidência, não querendo forçar uma relaç...

Nico - Wrap Your Troubles in Dreams

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  Poucos segundos separam os dois últimos segmentos siameses de Chelsea Girls. Primeiro, Pope Ondine , personalidade já conhecida deste épico da vida interior. A rispidez do discurso anfetaminado de Ondine, inicia-se com um indeciso, mas direto “I’m on? All right?”. Uma interrogativa que coloca em cheque a ingenuidade de qualquer um que queira acreditar no teor orgânico de um momento Warholiano. Porque no fundo, o que interessa não é necessariamente a verdade, nem a verdade filmada, mas a capacidade de reconhecer que a presença da câmera cria um momento único, capaz de ocupar um espaço infinitesimal que separa o consciente do subconsciente do inconsciente. É aí que muito do cinema de Warhol se movimenta: Num espaço (leia-se volume), nos seus limites  a priori e entre raccords não sugeridos, nunca forçados. Poucos segundos depois, surge Nico, filmada de um ângulo meticuloso, a chorar. Apanhada num sofrimento in medias res , na mágoa vivida no singular, nota-se acima de tudo...

Carne para canhão

O último Shimizu tem uma das cenas mais violentas que me lembro de ver num filme há muito tempo, no cinema clássico japonês rivalizado apenas pela queda nas escadas no Galinha no Vento do Ozu. Nesta cena, donde poderíamos escrutinar mil detalhes, o que mais permaneceu na minha memória foram as bonecas. O rapaz enraivecido ataca a meia-irmã utilizando sem grande pensamento um conjunto de bonecas como carne para canhão. No fim da cena, após a violência do rapaz e o silêncio ensurdecedor da madrasta (ou, a violência dela), o Shimizu faz uma panorâmica que começa nesta mulher e acaba numa visão picada das bonecas esquartejadas e despedaçadas do chão. Num movimento tão curto, Shimizu dá à imagem destes corpos imóveis descartados o mesmo chocante e intenso poder de uma foto aérea de guerra (ou do plano mais  famoso do Gone with the Wind ). Corpos que no seu devir-arma não são vistos como corpos, mas que depois da sua destruição são vistos como cadáveres. -Vasco