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Ver de perto o que está longe

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     Quando penso na ideia de filmar corridas de touros, é inevitável recordar as noites constrangedoras da RTP e as emissões pseudo-desportivas vindas do outro lado da fronteira. Não surpreende a aversão de muitos ao televisionamento do que acontece numa praça de touros. Albert Serra, felizmente, filmou de outro modo o métier do toureiro-popstar da actualidade, Andrés Roca Rey. O cenário do filme, o mundo das touradas, é uma dessas rachaduras que de quando em quando alimentam os noticiários e os debates em torno de prós e contras. Convoca todos os tipos de curiosos — vi-os reunidos na mesma sala. Uns, em excursão, convencidos de que iriam a uma tourada na 5 de Outubro, motivados pelo tio aficionado e pelo que leram na ¡Hola! sobre a fisionomia do príncipe destemido; gritaram olés , bateram palmas, e alguns concordaram em coro: «isto é melhor do que ao vivo». A outra tribo tapou os olhos e suspirou com repugnância. Todos couberam ali, incluindo os restantes. Uns afirmam ...

O desejo de Roberto Gavaldón

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 A palavra DESEJO, tem origem na palavra latina DESIDARE, que por sua vez significa “esperar por, desejar, ter expectativa, exigir”. Do ponto de vista etimológico, especula-se que a palavra possa ser proveniente da expressão DE SIDERE, cujo significado é “dos astros, a partir dos astros”, estando o seu sentido original associado à ideia de esperar por algo que as estrelas trarão. Nesta viagem de vocábulos, impressiona acima de tudo a aparente conexão entre o fatalismo, com toda a sua inevitabilidade e pluritemporalidade, e a vontade. Desejar é reconhecer a falta. Mais, é se calhar reconhecer a falta na posse alheia. É olhar o mundo, e reconhecer como objetivo uma qualquer materialidade que julgamos conhecer. No que toca ao fatalismo, não deixa de ser notável a constatação de que desejar é algo que acontece no presente, tendo por espaço de concretização o futuro, havendo um desfasamento muito evidente entre o sentimento e a sua consumação. Será essa a razão de tanta vez o desejo...

O Sr.Ford e o para sempre

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O Manquejar de Ema

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A mais bela cena de Vale Abraão é a última. A mais alta num filme de cumes que, ainda assim, culmina numa queda. Falo do momento em que Ema levita antes de tombar no rio. Levitar e tombar só podem conviver plenamente num filme de Oliveira: um cinema de contrapontos, onde se entrelaçam o carnal e o sagrado, o sisudo e o galhofeiro, o comezinho e o solene. A sua morte é anunciada no último plano pedregoso do vale do Douro, quando se ouve um apito infernal que anuncia o fim. Escuta-se uma das sete trombetas, uma cornetada que emerge do ventre daquelas rochas. Pouco depois, o mesmo plano revela, ou não, que essa trombeta leteia talvez seja a buzina de um comboio da CP que atravessa a linha entre os rochedos do vale. Não creio que seja apenas o apito do comboio que se ouve. Esse som que não vejo vem do fundo do Douro. No laranjal da quinta do Vesúvio, Ema, essa mulher-menina vestida de branco, parece levitar enquanto caminha para a morte. A levitação nasce do seu manquejar. É por ser m...

Encontros de Cinema do Fundão: Uma retroanálise

Quarta feira, iniciam-se as hostes com sedimentação nas cadeiras da tasca da estação. Degustam-se sandes de bacalhau, omeletes e gelados Olá, tudo regado com o melhor que a destilaria nacional tem para oferecer. Passa o tempo, ocorre a amigável expulsão, e sobrevive uma modesta conta de cerca de 7 dezenas de divisas. O resultado do beberete fatal, foi uma tarde bem passada, produtiva, ma non troppo . Está agora em casa o bicho do mato da Barata Salgueiro, que nesta incursão beirã busca sol, cinema, e um bem-haja honesto. Turva correu a noite, ao som de música de homenagem e conversas intensas. Os interlocutores vestem as suas entranhas num honesto bate-boca, onde o clube a defender é por todos partilhado. Dorme-se sobre o assunto, pois até o físico tem limites. Lateja a cabeça ao som das badaladas semi-horárias que se fazem ouvir em todo lado. O calor faz transpirar os erros da madrugada anterior. Rasgam-se as vestes: Somos homens novos. Segue-se um almoço atribulado, comprometido ...

Cinema plastificado

No final do século passado, e início deste, experienciou-se a hegemonia do plástico, praticada com entusiasmo por todos os seus contemporâneos. Incluiu-se plástico na roupa, sendo que se plastificavam manuais escolares, bilhetes de identidade, boletins de vacinas, cadernetas de cromos e peças de mobiliário com uma vontade inigualável. Por absurdo, creio até que se fosse a população convocada a votar por referendo a plastificação do padrão dos descobrimentos, com o intuito de proteger aquele mural enfadonho das intempéries, que a iniciativa seria aprovada, sendo o ato replicado no património que se julga digno de preservação, desde o arco da Rua Augusta, à pantufa da Serra da Estrela. Plastificar é cuidar. É por intermédio da criação de uma carapaça de petróleo, prolongar a vida daquilo que se estima, ampliando a sua resistência à ação dos fenómenos naturais em mais de 500 anos. Nos dias que correm, o paradigma é diverso, tendo a redução carbónica contribuído para o cavalgar da aniq...

As mãos e o Godard

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A propósito dos últimos filmes do Godard: Não são bem guiões ou « scénarios », nem storyboards, nem estudos preparatórios, mas uma fusão de tudo isso — um caderno-canivete —, a abstracção da própria ferramenta.  São imagens fixas que apontam para o movimento futuro, uma montagem que se desdobra folha a folha. Neste hábito artesanal, o maître-artisan  tacteava filmes, estudava continuamente uma forma de arte, esboçando exercícios circunstanciais sobre fragmentos da história; a sua e a dos outros. Vemos uma espécie de workshop : filma-se o personagem  principal, o mestre Jean-Luc, à mesa do seu estúdio, com um scrapbook repleto de  imagens e palavras, dirigindo um novo projecto, explicando, página a página, aos  habituais colaboradores, Jean-Paul Battagia e Fabrice Aragno, como deveriam finalizar  um filme que, supostamente, seria Scénarios .  O tom descomprometido, a forma como  afirma repetidamente que não sabe o significado de certos planos ou q...