As mãos e o Godard

A propósito dos últimos filmes do Godard:

Não são bem guiões ou «scénarios», nem storyboards, nem estudos preparatórios, mas uma fusão de tudo isso — um caderno-canivete —, a abstracção da própria ferramenta. 
São imagens fixas que apontam para o movimento futuro, uma montagem que se desdobra folha a folha.

Neste hábito artesanal, o maître-artisan tacteava filmes, estudava continuamente uma forma de arte,
esboçando exercícios circunstanciais sobre fragmentos da história; a sua e a dos outros.

Vemos uma espécie de workshop: filma-se o personagem principal, o mestre Jean-Luc, à mesa do seu estúdio, com um scrapbook repleto de imagens e palavras, dirigindo um novo projecto, explicando, página a página, aos habituais colaboradores, Jean-Paul Battagia e Fabrice Aragno, como deveriam finalizar um filme que, supostamente, seria Scénarios

O tom descomprometido, a forma como afirma repetidamente que não sabe o significado de certos planos ou que nunca quis ser coerente, disfarçam o que nutre esta conversa. Quando diz que é errado celebrar o aniversário do cinema a partir da primeira projecção, pois antes disso já existia a máquina e o trabalho, a ideia é clara: seria, diz ele, como excluir da obra de Leonardo da Vinci os seus cadernos. No seu estúdio, rodeado pelos assistentes que o filmam e o ajudam com as tesouras e impressoras, evoca o Renascimento, e vemos ali um ateliê onde aprendizes e mestre pintor trabalham sobre a mesma tela. O essencial, insiste, é o trabalho — e, por isso, os cadernos, os Scénarios.

A certa altura, nessa conversa, Godard sugere que o cinema ainda não alcançou o que a literatura consegue com o virar de uma página: um movimento exterior que remete para o interior — a transição íntima que o cinema ainda não soube replicar. A frase que repetiu ao longo da vida, de que na arte devemos “pensar com as mãos”, ganha uma forma concreta ao tornar um filme em algo táctil: página a página, plano a plano, um filme é pensado, tocado. O novo caderno não corresponde inteiramente ao que depois vemos em Scénarios; percebemos que o que se planeia «n’existera jamais». Talvez seja essa a razão pelo qual o título ficou no plural — como um exercício infantil, onde se esboçam infinitas e impossíveis coisas.

À mesa, é a mão do cineasta que toca na fotografia de Macron e aponta para o recorte ao lado sobre fake news; a mão que aplana tudo, como quando explica um travelling ao longo de uma palavra escrita, que é também usada para gesticular o movimento da câmara imaginária enquanto segura o isqueiro. Pensar e fazer um filme à mão: o gesto e o pensamento, o exterior e o interior. Assim se pensou manualmente Scénarios: o último dia da sua vida, o seu último (dia de) trabalho.


Rodrigo

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