Assim seja
Ao ver 3 Godfathers na 5 de Outubro, recordei e reforcei uma das ideias que mais me entusiasma no modus operandi fordiano: a sua capacidade sublime de colocar o mais ausente dos espectadores a ouvir passagem bíblicas.
Recordo com clareza a procissão e missa fúnebre de The Sun Shines Bright
(a revisitar), onde naquele momento criado, se julgam os justos e injustos através do pesar que demonstram pela falecida, onde se sente o peso da palavra, a
consternação imposta por Ford num ritual tão humano, forçando um momento de consciência
até em qualquer não batizado.
Em 3 Godfathers, impera um outro tipo de religiosidade: uma
religiosidade quase física, toldada pela conversão de um ladrão descrente,
naquele momento transcendental onde, sem dar por isso, ele próprio serve de
acólito silencioso (como todos os acólitos), na cerimónia fúnebre do seu
subordinado. No confronto concreto com a provação que lhe é imposta, dá-se o
contacto com o mito.
Por coincidência, não querendo forçar uma relação descabida,
na véspera li OS SENTIMENTOS ATRASAM de Artaud, onde num texto batizado com o
nome O MÉXICO E A CIVILIZAÇÃO, é dito o seguinte:
“Aos deuses ligados ao real, nunca se arranca o poder, e se
assim fosse a vida pereceria com eles”
É se calhar isto que torna a religiosidade de Ford tão
inflamada e não indiferente a quem a vive. Ford tem a capacidade de ligar deus
à realidade através da sua incorporação num plano necessariamente irreal, diáfano,
apenas concreto enquanto feixe de luz numa tela, sendo 3 Godfathers se calhar o
auge dessa fisicalidade, dessa concretitude: Através da colocação do divino numa
epopeia sobre-humana, protagonizada por gente a erradicar segundo a lei dos
homens, é dado a entender que o contacto com o terreno e a vivência de um momento
quase parabólico nas condições mais inóspitas, são de facto chances de
reconexão com deus; um deus que tira mas dá, obrigando a quem o experiencia a
reconsiderar os mitos que o fundam; obrigando-o a ligar-se ao real através da
constatação de que tudo o que caracteriza aquele momento, seja um delírio
febril ou visão desértica, tem um propósito e um fundador, que obriga a uma
tomada de consciência, à ponderação incondicional do passado e do futuro.
Para finalizar, deixo outro excerto de Artaud sobre a
vivência da religião do povo Tarahumara:
“Diante de cada aldeia Tarahumara há uma cruz, assim como há
cruzes nos quatro pontos cardeais da montanha. Não se trata da cruz de Cristo,
da cruz católica, mas da cruz do Homem esquartejado no espaço, do Homem de
braços abertos, invisível, pregado aos quatro pontos cardeais. Com isso, os
Tarahumaras manifestam uma ideia activa do mundo, uma ideia geométrica à qual a
própria forma do Homem está ligada.
Isso significa: Aqui o espaço geométrico está vivo, produziu
o que há de melhor, produziu o Homem.
A pedra que cada Tarahumara, ao passar, deve depor sob pena
de morte, aos pés da cruz, não é uma superstição, mas uma tomada de consciência.
Significa: deixa o teu sinal. Apercebe-te. Toma consciência
das forças da vida contrária. Sem essa consciência, és um homem morto.
Os Tarahumaras não temem a morte física: dizem que o corpo é
feito para desaparecer. O que temem é a morte espiritual (...)
Para eles o mal não é o pecado: a perda de consciência é que
é o mal. Os altos problemas filosóficos contam mais para os Tarahumaras do que
os preceitos da nossa ocidental moralidade”
Ali, naquele rio de sal, nasceu um crente consciente.
- João
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