Cinema plastificado
No final do século passado, e início deste, experienciou-se a hegemonia do plástico, praticada com entusiasmo por todos os seus contemporâneos. Incluiu-se plástico na roupa, sendo que se plastificavam manuais escolares, bilhetes de identidade, boletins de vacinas, cadernetas de cromos e peças de mobiliário com uma vontade inigualável. Por absurdo, creio até que se fosse a população convocada a votar por referendo a plastificação do padrão dos descobrimentos, com o intuito de proteger aquele mural enfadonho das intempéries, que a iniciativa seria aprovada, sendo o ato replicado no património que se julga digno de preservação, desde o arco da Rua Augusta, à pantufa da Serra da Estrela.
Plastificar é cuidar. É por
intermédio da criação de uma carapaça de petróleo, prolongar a vida daquilo que
se estima, ampliando a sua resistência à ação dos fenómenos naturais em mais de
500 anos.
Nos dias que correm, o paradigma
é diverso, tendo a redução carbónica contribuído para o cavalgar da
aniquilação do sintético. Correm meses sem que numa grande superfície me depare
com um saco de plástico. E se ouso beber um refrigerante numa cadeia de comida plástica,
sou confrontado com uma palhinha de celulose, eficaz, ma non troppo.
No entanto, existe uma parcela da
população portuguesa, inerentemente acumuladora, que temendo o holocausto do
polímero, reservou em gavetas quantidades abismais de exemplares deste objeto.
Têm hoje mais de 70 anos, e passeiam pelas avenidas e transportes públicos
cumprindo a relaxada missão de ocupar o tempo, alternando entre a sua mão direita
e esquerda um saco de plástico (fiel companheiro!), de preferência opaco, onde
escondem objetos insondáveis à nossa curiosidade de voyeur.
Nestas promenades, o cinema é
paragem habitual. E onde vão, vai o seu amigo, acomodado com carinho no seu
colo, ou colocado, sentado, junto aos pés, como um cachorro obediente. Na sala
escura, a presença de tal objeto seria presumivelmente indiferente. No entanto,
a componente sonora derivada do manuseamento urgente do conteúdo do saco
durante a sessão, apoquenta os ouvidos de qualquer espectador interessado.
E o problema é mais complexo do
que aparenta. É usual solicitar o silêncio de alguém. No entanto, a doutrina
converge para o entendimento de que é ridículo mandar calar um saco. Quem diz
sacos diz invólucros de rebuçados peitorais, pacotinhos de bolachinhas de água
e sal ou micas que protegem documentos da junta médica.
O desespero é real, a aflição
partilhada por muitos, os olhares furibundos direcionados ao agente alucinado de
tão desnecessária entropia, mas ganha sempre a indiferença, muitas vezes
acumulada com o estatuto que só a idade pode conferir.
A solução não é evidente, e
adivinham-se anos de propagação desta maleita auditiva causadora de tanto
desconsolo. Resta esperar que a redução carbónica chegue às salas de cinema, como
tantos filmes plastificados que por lá se passeiam.
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