Ver de perto o que está longe
Quando penso na ideia de filmar corridas de touros, é inevitável recordar as noites constrangedoras da RTP e as emissões pseudo-desportivas vindas do outro lado da fronteira. Não surpreende a aversão de muitos ao televisionamento do que acontece numa praça de touros. Albert Serra, felizmente, filmou de outro modo o métier do toureiro-popstar da actualidade, Andrés Roca Rey.
O cenário do filme, o mundo das touradas, é uma dessas rachaduras que de quando em quando alimentam os noticiários e os debates em torno de prós e contras. Convoca todos os tipos de curiosos — vi-os reunidos na mesma sala. Uns, em excursão, convencidos de que iriam a uma tourada na 5 de Outubro, motivados pelo tio aficionado e pelo que leram na ¡Hola! sobre a fisionomia do príncipe destemido; gritaram olés, bateram palmas, e alguns concordaram em coro: «isto é melhor do que ao vivo». A outra tribo tapou os olhos e suspirou com repugnância. Todos couberam ali, incluindo os restantes.
Uns afirmam que Serra filmou um manifesto anti-touradas; outros, que assinou uma apologia do sangue e da violência bacoca. De facto, o cineasta toma partido — em várias direcções. O filme dilui-se em contrastes: entre o olhar piedoso do touro moribundo, e a fragilidade de um matador desamparado. Isso não torna a obra ambígua nem quebradiça: é precisamente a incerteza que lhe dá força, permitindo-lhe espelhar aqueles que duvidam, os que mudam de ideias, os que pensam em algo e, ao mesmo tempo, no seu contrário; os que recusam o absoluto sem deixar de o ponderar, sem deixar de admirar quem o persegue.
O jogo de contrastes começa no primeiro raccord. Um touro aparece na penumbra de uma ganadaria, numa noite que contrasta com as tardes de sol e sombra da arena. A apresentação noctívaga do animal ecoa na cena seguinte: a do toureiro luzente, ferido, recolhido no interior de uma carrinha de vidros fumados, sempre nocturna, mas cheia de luz. Terá sido aquele touro da noite quem lhe deixou as marcas do dia? Não se sabe. A primeira tarde fica elidida, suspensa nesse raccord. Desde aí, impõe-se um som: a respiração do bicho. Apesar de se ouvir por vezes o pasodoble da banda que, à semelhança da plateia, nunca se vê, é a respiração do animal que marca o compasso do filme. Primeiro isolada, depois constante e subterrânea, como um metrónomo invisível. Um batimento grave que guia o mundo de Roca; um ciclo de entradas e saídas por portas de arenas, carrinhas e hotéis, de inspiração e expiração. O fôlego é partilhado até ser interrompido pela morte. Depois, vem outro touro — diferente e igual ao primeiro.
Se é verdade que touro e toureiro são os heróis, a trupe que acompanha Roca Rey funciona como coro. É uma corte em torno do Rey tão peçonhenta como qualquer outra corte - Serra, já mostrara em A Morte de Luís XIV (2016) a coreografia de uma bafienta corte que apaparicou e parasitou o rei Sol até à morte. Enquanto vemos Roca a tourear, ouvimos os comentários e murmúrios da sua cuadrilla, como um coro de uma tragédia que observa fora do palco. Têm todos bem estudada a lição de cortesãos: incentivam, gritam impropérios, exaltam o herói com refrões sobre a pureza da sua faena e sobre o tamanho dos seus testículos. De volta à carrinha, no regresso ao hotel, o mesmo orfeão incessante de elogios abafa qualquer voz própria de Roca. Mas, quando ele desaparece, no fim de uma tarde desastrada, a cuadrilla revê a actuação num telemóvel, critica os riscos desnecessários que tantas vezes o jovem matador assume. Se à frente dizem que não foi apenas sorte e que toureou «comos os grandes», então atrás, quando Andrés desaparece, a corte descontrai e vai beber cervejas «mais geladas que o touro morto». Eles prestam-lhe uma forma de cuidado, própria de quem vive na sombra de alguém que está perto, mas afastado.
Percebemos que o jovem matador come à parte, mantendo a distância entre senhor e servo. Roca isola-se. Recolhe-se ao hotel — para quê, não se sabe. A sua existência resume-se a ser toureiro. A sua vida reduz-se a uma performance autocontida, quase esvaziada de interioridade. Serra retrata um Andrés mais próximo do animal do que de qualquer um dos homens que o rodeiam. Num plano mostra a língua ao touro; no seguinte, também o touro o faz. Quem imita quem? Segundo a tradição, quando o touro mostra a língua, é sinal de cansaço ou de medo. A sua existência, como a do touro, é confinada ao destino de cumprir um papel que o separa dos restantes. Touro e toureiro estão sós — aí se entalha a Soledad do título.
Roca Rey é uma figura estranha, impessoal e desconfiada. Um grande actor, certamente. Dos melhores da actualidade. Não um louco, não um suicida — mas alguém que está sempre em cena. O sopinha-de-massa, de voz trémula e acanhada, faz parte do mesmo retrato que mostra o corpo esguio e escultural, semi-nu em collants, ajeitando o sexo à frente do fiel escudeiro que lhe veste o irrespirável traje de luces. Sob o sinal-da-cruz repetido coreograficamente perante uma Nossa Senhora, cumpre-se um ritual principesco que parece anteceder um sacrifício pagão. Depois disso, o enroupado e quem o enroupou aguardam, monotonamente, dentro de um elevador dourado que os levará ao lobby de um Ritz.
Se o cinema é tempo e movimento, também a tourada o é. E se o cinema tem a ver com o estranho prazer e desconforto de olhar para vivos e mortos, aqui não é diferente. A relação entre cinema e tourada é convocada para ser, ao mesmo tempo, posta em causa: quando o coro diz que Roca toureia em câmara lenta, como se esculpisse o tempo, é essa modulação que Serra sugere — mas apenas para mostrar que essa escultura não existe, que o tempo da lide é sempre outro, sempre distante. No cinema dos touros, morrem muitos ou morre apenas um? A montagem responde. Não é Roca que controla a montagem ou o tempo. O filme mostra isso — a vida e a morte são decididas por um corte. E é nessa repetição que Serra fixa o que parecia fugaz. Aos touros e a Roca Rey concede uma forma de eternidade — a do cinema.
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