Efemeridade do documentário
Sou da opinião de que quando uma realidade retratada cessa a sua existência, a definição “documentário” esgota-se, e passamos definitivamente a estar mais perto do campo da ficção, do que do da repetição e retrato de uma qualquer realidade, aparentemente tão concreta e definida aquando a sua criação física.
Lembro-me de dois exemplos que tiveram em mim esse choque inequívoco: A festa de António Campos, e Jaime de António Reis. Os dois, por razões distintas, e, se calhar, na sua génese opostas.
Em A festa, António Campos filma de forma bastante objetiva uma festa hoje abandonada, cheia de gente que não existe, e (anti)personagens que nunca conhecemos, e que não podemos conhecer. Se calhar, a melhor e única maneira de as conhecermos, seria fazê-las voltar ao ecrã; Trazê-las de volta, num qualquer enredo que, descontemporâneo, trataria de as invocar, trazendo-as para um plano que nunca quiseram ocupar. Fazer a festa em 2024, recriar plano por plano este filme, seria ultimamente um exercício ficcional, embora que se calhar retrospectivo.*
Em Jaime, o caso é outro. Reis não conta uma história: Mostra-nos resquícios de algo que mesmo quando existiu, ninguém teve a possibilidade de documentar. Jaime está morto, já estava para António Reis, e trazê-lo de volta à vida pela imagem filmada dos seus resquícios, é ficcionar sobre a sua existência, ainda que tendo por base factos muito concretos: A arte de Jaime, ainda que poucos a tivessem visto, ninguém lhe tira. E os campos que Reis filma, ainda devem existir. Existirão, sempre, mesmo que a sua matéria apenas esteja conservada numa qualquer fita, arquivada numa câmara térmica cosmológica; num espaço criado no outro, que a recebe. Adicionalmente, a montagem de que o filme se serve, contribui de forma mais vincada para este objetivo: O de tornar turva a clareza do documentário. A objetividade não existe. E aquele tempo filmado, por ser outro, é necessariamente irreal.
A única realidade que temos é a contemporânea. Qualquer registo do passado, por mais objetivo que seja, ou que tentasse ser, tem mais de ficcional nos dias que correm do que qualquer retrato. Se existem documentários? Claro que existem. O documentário é se calhar uma intenção, e mesmo que, sem querer ou saber, se torne numa ficção, quem o decide não é quem o cria: É quem o vive, a qualquer dia da semana.
*“. . . se certas situações já não existem, ou tendem a desaparecer, então não há que desenterrar um passado que nos é penoso. Há sim que tornar sólido um presente onde o futuro se possa articular.” - António Campos
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