Alma Minha
Um coração pode sempre bater mais. Quer seja por necessidade, ânimo passageiro ou simplesmente índole. Pouco vale taxonomizar a copiosidade de possíveis causas, é muito mais interessante direcionar o foco ao batimento pulsante em si. E, este filme, é um telegrafar completo dum destes palpitares rítmicos capazes de levar a terramotos, sem nunca esquecer o corpo que envolve esta bomba hidráulica, e o cérebro que também a informa.
Num dos planos mais bonitos do filme vemos o protagonista (representado pelo realizador) enquadrado num plano picado, com o seu braço deitado e dobrado em ângulo reto, repousando levemente como cabeça acéfala na segunda almofada da cama onde dorme sozinho. Não a acaricia, nem faz pressão. O visível neste plano não é necessariamente a metáfora óbvia que se poderia forçar no enquadramento, o “coração sozinho que agora tem de bater pelos dois”, fechada aí, satisfeita com a sua superfície.O coração bate por dois sim (ou em sincronia: “Todas as noites é o mesmo. Com o olhar na terra digo: Sinto o teu coração, e o meu baterem com força. Ela, com o olhar no céu, responde: Ambos temem o que aí vem.”), mas vai além da simples multiplicidade: não bate o dobro das vezes para compensar uma falta, mas, por amor, a válvula explode ciclicamente com o dobro da intensidade. Um enquadramento não surge nem vive só por si, e por muito que nos possa direcionar, para chegar ao ponto em que vemos um rapaz parado no escuro sentimos um coração vivo num corpo adormecido, algo teve de desbravar este caminho até lá.O filme é uma carta de amor. Não uma declaração romântica, mas uma carta que se ocupa dessa temática. Não necessariamente feita para o seu destinatário, mas também não parece ter sido feita para nós. Parece surgir de urgências que Manuel consegue lapidar num objeto fílmico, sem se deixar cegar pela irracionalidade inerente ao conceito de urgência em si. Raríssimo - um filme sismógrafo do coração que é feito sem qualquer capricho, pensando sempre no filme em si. Mesmo assim não contém nenhum academismo remoído, nunca para de ser um coração que nos é oferecido. Nós não somos o destinatário deste telegrama, tal como possivelmente também não o é o objeto amoroso para quem é feito e a quem não é enviado, mas é-nos oferecido no sentido em que nos é permitido ver – num estado que espero não ser simplesmente voyeurístico – e acompanhar este corpo que sente e se deixa balouçar nestas exaltações.Esta carta com direção de escrita e não endereçada, mas aberta a quem com ela se deparar, é construída por três tipos principais de planos. Os planos encenados, filmados pelo próprio realizador para o filme, intertítulos com versos poéticos de natureza epistolar, e “imagens de arquivo”. Como é que funciona cada grupo, e como é que depois eles se conjugam?Em termos geométricos, o filme estrutura-se em segmentos de reta. Curtos blocos com inícios e fins determinados, mas que por proximidade propositada comunicam ininterruptamente na linguagem partilhada da infeção mútua. Os segmentos de reta mais óbvios são os curtos planos encenados, normalmente estáticos ou com um movimento específico e definido, ou as frases que aparecem no ecrã, com a brevidade incisiva de poemas de um só verso independente. Como disse antes, o filme podia ser visto como um decalque em filme deste coração, e segundo este modelo, o filme funciona num movimento perpétuo de exteriorização nunca gratuito. Tanto nos versos que aparecem no ecrã, que parecem vir do protagonista, como nos planos encenados, em que vemos este corpo de certa forma estoico em contacto com o mundo. Estes contactos fazem se tanto entre a escrita e o som/imagem dos planos encenados*, como dentro da imagem em si, no contacto do protagonista com a cidade**. Mesmo que a cara que vemos não seja facilmente decifrável, é impossível dizer que as emoções não se sentem: a montagem é constante entre este corpo presente que não exterioriza por si e a interioridade extrema que de todas as outras formas é externalizada, seja na escrita no ecrã, na memória filmada, ou no barco oscilante…
A gentileza e ternura do filme penso que vem em parte daqui, destes pequenos momentos fechados que são considerados, pensados e apresentados na íntegra. O que vai além só da posição da câmara e da duração de plano (embora estas obviamente sejam decididas em conjunto), mas no ethos e movimento do filme em si, estampado pela direção do percorrer desta personagem; um rapaz que, segmento a segmento, para, reflete, anda, para, reflete, anda…Mesmo quando anda não para de pensar, e nós, com ele, sentimos o que ele pensa pelo que ele nos mostra. Nunca do seu ponto de vista literal***. Isto já logo desde o primeiro plano figurativo estranhíssimo, que nos obriga a lidar com uma personagem enquadrada e a olhar em frente, a ver algo que não sabemos.Se calhar estranho porque está enquadrado em primeiro plano de uma forma tão marcante, mas não numa frontalidade desafiadora muito vista em que o espetador se não é o desconhecido observado, pelo menos está no seu lugar; desconcertante, mas facilmente deglutido no seu formalismo exposto. Em vez disso, o cineasta-protagonista está situado em ¾ virado para a esquerda, a encarnar no olhar da sua cara meio iluminada esse enormíssimo fora de campo. Logo a seguir vira-se de costas e segue em frente, agora sim oferecendo uma frontalidade, mas da sua nuca. Afastando-se sem nos fitar, com a iluminação moldada e restruturar-se.
O filme, nestes segmentos que se esfregam em comunicação, vai além de um kuleshov, em vez disso dando a cada plano espaço/tempo amplo para respirar. Generosamente permite-nos ponderar as suas associações, conseguindo pensar a lógica do sentimento e sentir a sua força, não pedindo que sejamos passivos à resposta imediata de sentido.Como já mencionado, a interioridade não ganha só forma nos planos encenados, ou filmados na cidade. Depois do plano que já remoemos da cama, uma nova categoria estabelece-se. Repentinamente, o filme corta para uma visão de plantas, substituindo o grão do digital pela cor romântica e seca de Super 8, com o vento a acariciar estas nervuras gémeas que brotam da terra. E logo a seguir para outro plano, agora mais afastado – ainda estático. Uma rapariga em pé no meio das plantas. Para quem estivesse já a germinar medo na alma por um possível preciosismo da beleza, o terceiro “plano-memória” arranca a dúvida pela raiz. Numa panorâmica que acompanha uma serra, de uma ponta à outra e de volta ao início, esta é-nos dada numa câmara à mão que apresenta na sua lapela todas as marcas da mesma. Uma gravação passada que pela montagem se torna numa gravação presente do passado. Uma filmagem antiga que no tempo real ganha a textura duma memória a ser filmada agora no presente, com a alquimia do não propositado tremelique da altura da mão do realizador que pega a câmara – fora de campo, mas inscrito no mesmo – colidindo com a sua imagem que vemos no resto do filme, nos seus seguros segmentos de reta.
Logo a seguir voltamos à cidade (a um novo eterno presente resultado de restruturação demiúrgica, a tal alquimia de uma nova atemporalidade imanente), e nunca vimos um céu tão parado. Ao longo do plano há um mínimo movimento, mas neste alto contraste a lua cheia parece um autocolante circular no céu, enquanto cá em baixo na terra, ou melhor, na água, os barcos abanam. Quem em terra parada por dentro treme, tem os ouvidos abertos para as ondas da água – como quando um som é agudo o suficiente ao ponto de um diapasão na sala vibrar em harmonia sem nenhum toque.É um filme lúgubre, mas de nenhuma forma tétrico ou frio. Pelo contrário, é um filme extremamente quente, um filme cheio de e que transborda de amor a um nível quase insuportável. Tem o calor de uma chama bem amarela de uma vela, da cor da cera não tratada também. Uma vela pequena, com uma chama de tamanho proporcional, mas com uma luz que sidera nesta sua natureza ondulante, viva, a abanar com o vento, a dar a cor àquelas mãos em reza que ilumina.
Longe de fetichismo mórbido, é uma lugubridade lindíssima e sensível. A rima do “Agora morro” no ecrã seguido pelo grão da memória encontrado nos soluços do ralenti… A memória não tem som, nem o chilrear estereotípico do campo, o som ou está no presente, no envolvente ruído da vida que acontece quando poucos estão acordados, ou o silêncio que acompanha e granula ainda mais a memória já atacada pelo abrandamento da imagem.“Agora morro…” Se é isto que é estar morto, então nós restantes somos cadáveres já para além dos últimos estados da decomposição! Morreu para amar mais e por isso mesmo ressuscitou. Porque como me ensinaram na catequese, ressuscitar não é voltar dos mortos, é viver de uma nova maneira, agora para sempre.
*Há um jogo constante com o sentimento que é exteriorizado na escrita. O que lemos e como se relaciona com o que veio antes e depois. E claro, a natureza do que lemos em si: um rapaz que pensa, um rapaz que escreve para alguém, ou um rapaz que escreve para nós? /Um realizador que pensa, um realizador que escreve para alguém, ou um realizador que escreve para nós? (o Graças a Deus de uma efusividade tetricamente fervorosa que precede o último plano…)**O protagonista anda e observa tanto como nos dá a observar. O realizador dá-nos a observar tanto ele e os sítios, como os embates e encontros entre eles. O protagonista passa em frente do barco, e logo a seguir, não só olha ele para as ondas, como nas mostra também, retirando a nuca de campo e deixando a água agitada ocupar o plano.***Sem ser nos lindos planos em que a memória é tornada presente.
-Vasco
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