Untarmo-nos com um cheiro é uma declaração de missão

Há uns tempos, ao ver o La Maman Et La Putain do Eustache pela terceira vez (pela primeira vez em sala), reparei que Marie indireta e acusadoramente denota o perfume usado por Veronika: Bandit de Robert Piguet. Tendo uma obsessão doente pelo mundo da perfumaria histórica* e partilhando a crença de que a escolha de cheiro pessoal é uma declaração implacável de missão pessoal, entrei numa espiral de aproximação a Veronika por meio de pesquisa.

O primeiro passo foi consultar o "Perfumes (The A-Z Guide)"de Luca Turin e Tania Sanchez, o dicionário do Lourcelles da perfumaria:

"bitter, dark yet fresh, beguiling without any softness, and still several unlit streets ahead of every other leather chypre** around"

O guia costuma ter entradas incríveis, mas fiquei desapontado de neste caso só falar da problemática da sua reformulação, apenas falando do cheiro em si na pequena citação que deixei.

Face à desilusão fui consultar o guia original francês, pré a inclusão de Sanchez, do qual deixo uma tradução inédita e integral:

Piguet não está morto, Piguet está de volta! Esta novidade não pode senão preencher a aficion enlutada deste perfumista fora de série. Esperemos apenas que os “sucos” sejam respeituosos das antigas fórmulas. Enquanto isso, Bandit e Fracas voltaram dos EUA onde estavam à sombra. Genial perfume de néon amarelo em fundo castanho, ilustração perfeita do gosto audaz, variegado e felino de Robert Piguet, rival implacável do seu sucessor Cabochard (Grès), Bandit fará estremecer numerosas criações temperamentais e fictícias da perfumaria alegadamente “sexy” dos últimos dez anos. Indispensável.

Lançem primeiro os outros membros da Bande à Piguet: Baghari, Futur e Cravache e depois se discutirá. À experiência, o novo Bandit, depois de uma abertura inquietante, está próximo do original mas um pouco achatado: contém o mundo inteiro, mas em vez dum Caravaggio temos uma foto de turma. Bravo de qualquer maneira.

num homem: Cuidado!

numa mulher: à mão, na caixa das luvas, na condição de que esta contenha realmente luvas.

Ainda insatisfeito, decidi embarcar numa incursão aos cantos recônditos do Fragrantica, o equivalente do Letterboxd para perfumólatras:

"Created by Germaine Cellier for a man - Robert Piguet's lover - at the beginning of the 40's, this one is unisex at least ! Green leather chypre at its best, old-world but avant-garde, maybe too modern for our time. A slap with a leather glove."

-Frenchie Boy

"It is very similar to Chanel No 19 or Sisley Eau Du Soir, but more animalic and leathery. In fact, it smells like my own sweaty armpit plus oakmoss.

I can only imagine what a shocker it was back in 1944!

-Sopelka

"It's VERY masculine and smells to me like cigars, but fades very quickly to almost nothing."

-Toujours

"So what does Bandit really smell like? Well, my initial thought is trains. The opening is a lot. There's the burnt rubber, grease and beastly mechanical terror. It's going somewhere and I don't know if I'm worthy of trailing behind, but oh boy do I want to be.

The drydown - like most chypres - is surprisingly approachable. It softens considerably, the leather and galbanum settle down into an no-nonsense partnership. They won't let up but they won't rip you a new one in the process. Like a warm engine, the drydown functions well and is appealing, but god help you if you get in its way: it will plow through you without mercy."

-Laurafergs

"At thirst, I thought this is men's frag or unisex. But as the scent develops it unleashes its feminine side. The scent from the beginning till the end is quite dusty/smoky and quite earthy but on the dry-down, it shows its feminine side. Not a crowd-pleasing frag. This is purely sophisticated and a bit scary."

-FreddyK

"When first I put it on, I was sooo not pleased with how much money I had spent on this acrid, masculine chypre scent that brought to mind a dead animal.

But as it settled in over the next little while, I started smelling the floral heart (I get rose, white floral, violet and jasmine?) and the smoky patchouli and leather notes blend in with that in such a unique and...masterful way in this perfume. It's nothing less than intoxicating.

It is very strong so a little goes a long way. I do wear it during the day... I just spray it in the air immediately in front of me and then walk through the mist. But if I had to choose, I would categorize this as a nighttime perfume and you should still go easy on it because it could be overpowering."

-OdileVonRothbart

*o que me levava a, obviamente, já conhecer o perfume, uma das mais controversas e divisivas (ainda que mesmo assim populares) obras da era moderna deste meio artístico.

**para os menos iniciados um chypre é um género de perfume com uma coposição muito específica que combina notas de abertura cítricas, notas de coração de ládano, e uma base que mistura musgo de carvalho (e possivelmente outros tipos de musgo) com notas animálicas. Um cheiro muito verde, normalmente estridente e amargo, mesmo quando acolhedor, que tenta evocar a ideia da base de uma floresta. Um leather chypre é um subgénero que se inaugura nos anos 40, a altura de inauguração de Bandit, que acrescenta notas de cabedal ao cocktail.