és tu sim senhora, monsieur Carax
«Work in Progress» é a frase que abre o primeiro plano do novo filme de Leos Carax, fingindo ser um aviso à navegação. Depois de um ponto de interrogação se sobrepor à imagem inicial, compreendemos o falso dilema: o filme está feito, «Work is Done», respondemos nós. Quer tenha ou não cumprido a encomenda do Museu Pompidou, que lhe pediu um filme-retrato capaz de responder à pergunta: «Leos, où êtes-vous?» — o resultado é um auto-retrato. Tudo é familiar para quem conhece a sua obra, mas, desta vez, Carax esconde-se menos — afinal, o tema é ele próprio. Talvez por isso tente desprender-se desse reconhecimento já no título, como que envergonhado. «Oui, ce n’est pas toi, mais c’est à toi», respondemos nós.
Sem surpresa, a resposta à questão do Pompidou é que Carax ainda anda pelo cinema. O filme acaba por ser uma descrição da arte que pratica. É um retrato do cinema segundo Carax — é um filme inconfundivelmente seu. Ainda assim, há quem veja um filme de Godard, acusando-o de imitação. Sobreposições de imagens, profusão saturada de palavras fluorescentes, excertos de filmes, citações e pinturas de outros artistas, bem como denúncias a ditadores, são tiques que nos fazem inevitavelmente associar o filme à cartilha de Godard; até a narração abafadiça em voz-off invoca o tom rugoso do mestre franco-suíço. Mas, mesmo se ladrão que rouba Godard tem cem anos de perdão, como diz o povo, é inegável que este filme só poderia ser de Carax. O tom é menos áspero, o corte e colagem mais delicado e o ritmo é menos tricotado. O filme-ensaio dá lugar à crónica, simulando um desprendimento que lhe permite falar mais de si próprio. Finge-se pensar menos para enunciar ideias de modo descomprometido: Putin e Polanski surgem como notas de rodapé, não como proclamações estridentes. Carax é mais pop, mais brando e menos incisivo que o professor.
É um filme sobre fantasmas — ou sobre como conviver com eles. A dedicatória a um amigo e colega falecido, as repetidas evocações da actriz e mulher do realizador, Yekaterina Golubeva, e os vários momentos in memoriam dedicados a pessoas com quem trabalhou revelam essa relação com os mortos. Para Carax, pensar em cinema tem como efeito pensar nos que já partiram — os seus e os dos outros. Marilyn Monroe e o pai de Carax partilham o mesmo plano; filmes e lembranças sobrepõem-se, tudo ocupa a mesma prateleira. O filme é, simultaneamente, museu e cemitério, onde tudo o que existe no cinema, no dele e no dos outros, pertence à mesma família. É um exercício de cinefilia que corresponde a uma visita constante ao que já aconteceu, ao que já foi filmado e visto, onde todos os fantasmas se encavalitam numa Histoire du cinéma que novamente se funde com a história do século XX e XXI e, mais do que em Godard, com a história de um indivíduo.
São poucas as cenas filmadas de raiz para o filme, dominado pela reutilização de imagens. No material mais fresco, vemos Denis Lavant, o seu alter-ego e quase-musa, que ressurge como Monsieur Merde, caminhando ao lado do realizador num jardim. Depois dos créditos, a boneca Annette, ao som de «Modern Love», de David Bowie, recria a dança-corrida de uma das cenas mais icónicas de Mauvais Sang (1986). Afinal, o que vemos de novo não é assim tão novo. Num filme de memórias, Carax ressuscita personagens para lhes poder tocar: o primeiro, de braço dado numa caminhada desajeitada, e a segunda, manuseada enquanto marioneta. Todo o filme parte desse movimento, tudo é evocado para poder ser remexido, tudo pertence ao mesmo composto, onde velhos filmes e pessoas antigas se tornam em algo semi-novo. Em Pola X (1999), essa obra-prima mal-amada, já se clamava por um universo humificado, onde todas as personagens pareciam igualmente mortas e vivas, ligadas por todos os laços impossíveis, onde mães eram amadas e amadas eram irmãs. Aqui, a indefinição mantém-se: não se percebe o que pertence a quê e a quem. Tudo se emaranha, não se vê bem, e o nevoeiro ganha um tom jocoso quando vemos três piratas de pala – Ford, Walsh e Ray – que se confundem com um só, que, tal como Carax sugere, só com um olho viam os mortos e os vivos melhor que a maioria.
O cineasta francês, que diz já não ir ao cinema, costuma afirmar que o cinema já existia antes da máquina. Faz ecoar Bresson: «Le cinéma n’est pas parti de zéro». E, por isso, diz querer procurar um cinema primitivo, cujas origens reconhece, por exemplo, nas artes circenses, que sempre tentou evocar. A verdade é que Carax gostaria de viver num cinema antes do cinema mas que, por magia, ainda pudesse ser cinema: quando filma com um telemóvel a sua filha em casa ou a passear nos locais de Paris onde em tempos gravou filmes, move-se entre a paternidade e a realização de um filme, entre o que precede a filmagem e o que acontece ao filmar, num mundo onde todos se apropriam de tudo – onde realizadores criam fantasmas. É por isso que, entre os registos de insónias e escritos diarísticos que acompanham o filme, declara várias vezes, fingindo-se novamente inocente, desejar ter o olhar de uma criança que brinca. Mas uma criança que já sabe muito: sabe que revisitar o seu cinema é revisitar o cinema dos outros e que descrever uma experiência artística pode, por si só, ser uma forma de arte – onde a própria descrição se torna criação, como sugeriu um filósofo.
escrito originalmente para a Forma de Vida
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