Silogismos do Júbilo
Ao ler o Silogismos da Amargura do Cioran, e sinto-me
quase mal a dizer isto, regozijei ao deparar-me com uns aforismos, que embora não
necessariamente maus, se calhar menos fortes, menos impactantes. Não por um sentimento
de vitória, por sentir gozo em ver o mestre a malograr a sua escultura*, mas
por estes abrirem espaço para respirar. Um livro de aforismos em que todos
os aforismos fossem bons seria insuportável. Se um bom aforismo é como uma
bomba que descarrila o teu dia**, um livro destes demorar-te-ia o resto da tua
vida a ler, estando conscientemente a pedir de ti uma devoção monástica - exigência
tirânica!
Este raciocínio está de certa forma ligado à razão pela qual
o Elogio do Amor do Godard ficou tão marcado na minha cabeça como um Filme-Aforismo,
ou melhor, um bom Filme-Aforismo
Não há de ser coincidência que numa entrevista de Pierre
Assouline a Godard, uns poucos anos antes deste filme, ele use o Cioran como
exemplo para falar da sua "queda para o aforismo". E é um acaso feliz para mim, neste caso pouco
significativo fora do campo da coincidência, que ele use exemplos retirados especificamente
do Silogismos da Amargura (dois deles mais tarde reapropriados no filme
em si!).
Evitando o recurso estilístico batido da intermedialidade de
dizer que um filme é um grande livro de aforismos, se não é um livro, pelo
menos é uma grande antologia. Não querendo resumir o filme a aforismos, porque
claro que é muito mais que isso, quero mesmo assim sublinhar a enormidade deste
aspeto singular entre muitos. Porque neste registo aforístico trabalhado por
Godard, ele desenvolve uma linha de generosidade em que vários destes acabam por
ser repetidos ao longo do filme. E quando digo repetidos, não me refiro a um
transplante idêntico: neste filme há aforismos verbais, de imagem e de som, e
cada um destes contém um trabalho complementar ou contrastante com os outros
dois aspetos; e quando um dos de registo verbal é repetido, há um contraste
consigo mesmo dado por uma nova relação, um novo choque produtivo, com a imagem
e o som que constituem o meio através de qual o recebemos. A um nível mais
primário dá-se a questão de uma criação de sentido progressiva sobre os mesmos
temas, não algo entregado já pré-pensado, mas que pede a participação ativa e
pensante do espetador***, mas o que se dá simultaneamente num nível menos imediato
comove-me mais – o tempo permitido num filme curto para pensarmos acerca de
cada uma destas ideias. O entender que nada se ganha com uma enxurrada
bulldozer de pensamentos, que mesmo que incríveis, acabariam por se
desrespeitar a si mesmos, existindo uma diferença marcada entre respeitar a
capacidade de pensamento do espetador e desrespeitar a profundidade de uma
ideia e o tempo de reflexão que esta merece.
A mesma beleza generosa que eu encontro na inclusão dos aforismos menos bons no livro do Cioran, aqui encarna-se na repetição justa das minas de pensamento com maior potencial de explosão.
*porque os aforismos do Cioran são acima de tudo esculturas, a linguagem como pedra que ele lapida manual e subtilmente até encontrar um diamante que nos entrega no auge da sua beleza e impacto. Em Cioran, lapidação subtil é a regra do jogo.
**ou semana, mês, ano... Os aforismos mais fortes acabam por te assombrar para o resto da vida, tornando-se em lentes com que passas a ver e interpretar o que está á tua frente, sendo ativadas recorrente e involuntariamente em situações quotidianas que as chamam à superfície da memória.
***generoso também por não digerir por ti. Por confiar que por trás dos olhos que veem está um cérebro pensante, em vez de nos condescender num paternalismo de pássaro que mastiga as minhocas antes de dar aos filhos.
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