Uma bufa dourada

           Quem me dera poder parar o tempo, criar um novo mundo, um novo homem. Quem me dera que pudéssemos recomeçar, forjar uma nova humanidade, que vivesse em paz, sob tons celestes e dourados, onde todos aprendessem uns com os outros em cidades-jardins que equilibrassem a natureza e o engenho humano. Quem me dera que um filme tivesse espaço para tudo isso. Megalopolis é exactamente isso: um desejo infantil filmado, um gesto de ambição embrulhado em talha dourada. Não se trata de mostrar o produto acabado de uma ambição, mas de capturar a ambição em potência – uma vontade bruta, esboçada em gatafunhos, onde ideias insufladas, rostos e imagens pré-monumentais se combinam sem direcção clara, como um plano ideal ensaiado até ao infinito. Apesar dos acabamentos rococós, estamos diante de mais uma torre de Babel, um monumento fadado a cair sob o peso da sua própria insustentabilidade, uma criação que antecipa a sua exaustão. Todos já fomos grandes realizadores e escritores nas nossas cabeças, concebendo obras-primas em territórios onde a execução e a coerência são dispensáveis. Megalopolis dá forma (disforme) a esses gestos: é o congelamento do primeiro suspiro de uma consciência envolta nas suas fantasias; é a planta, o projecto da fachada de um monumento imperfeito por design, que escusa profundidade porque o que importa é seguir em frente.

Entramos neste pré-épico, como em todos os épicos, in media res. A trama não nos é estranha; já a vimos, já a lemos, e alguns dizem que a vivemos: uma cidade, ou um mundo – Nova Iorque à la Roma Antiga, em estado paliativo. Aqui, políticos e banqueiros corruptos mantêm-se erectos à custa de pão e circo, patrocinando alvenaria para pobres e espectáculos de caridade protagonizados por virgens-vestais que cantam como as meninas da rádio – uma espécie de Taylor Swift generosa que se doa aos coitados de telemóveis e notas na mão; dinheiro, muito dinheiro. Em contraste, temos o génio: um inventor à moda antiga (Adam Driver), um visionário decadente e luminoso, capaz de parar o tempo – o tempo do cinema e o tempo da história – de travar a queda iminente da sociedade ao conceber um novo mundo – feito de uma substância misteriosa que lhe valeu um Nobel, da qual pouco interessa saber o que realmente é. Esse novo mundo é uma promessa luzente, indefinida e etérea, um reino que não é deste mundo, que não é sombrio, mas cintilante, que será, de algum modo, melhor do que este.

Dizem que o realizador de O Padrinho ficou choné, que vendeu as vinhas para torrar milhões num rascunho de uma fábula, sem sequer oferecer um filme com meio ou fim, sem mostrar claramente essa nova gente que, segundo ele, irá transcender a escuridão. Esse mundo, senhoras e senhores, é um sonho em cacos auríficos, uma memória de um jardim perdido, um desejo suspenso numa névoa cada vez mais brilhante, mas que não deixa de ser névoa; e é por isso que só vislumbramos amostras dessa cidade-fábula, na qual as pessoas parecem passarinhos pensantes que vivem entre árvores e riachos.

Esta tapeçaria caótica, entrelaçada pelos pecados do dinheiro, das drogas e do sexo, tece-se sobre a inevitabilidade da queda: estátuas derrubadas, reputações humilhadas, satélites de antigos impérios que caem como caem os impérios contemporâneos. Não por acaso, algumas das cenas mais memoráveis no filme revelam esse equilíbrio precário entre queda e ascensão: Adam Driver, no topo do Empire State Building, parece sempre à beira de tropeçar sobre a cidade que tenta mudar; ginastas desafiam a gravidade em acrobacias arriscadas; falsas virgens cantam nas alturas, mas desejam cair quando vêem a sua impureza desmascarada. O filme respira entre ruínas e esperança, entre a constante queda e o impulso de se erguer, e é dessa dualidade, desse limbo perpétuo, que Megalopolis vive. As estátuas-pessoas projectam isso, essas sombras desnovelam as melhores sequências: quando o peso das pedras rígidas reflecte a fragilidade de quem as ergueu; quando esculturas gigantes da justiça cega se desmoronam sozinhas ou quando silhuetas colossais projectadas em arranha-céus se encolhem diante de um perigo iminente. Esses momentos cristalizam o medo que o filme tenta vencer, admitindo a ruína inevitável de algo demasiado grande, mas com a esperança de que os escombros do passado possam ser matéria-prima – como os romanos que esburacavam o mármore dos coliseus para construir pontes – aqui, as estradas romanas conduzem-nos para uma nova forma de vida.

É uma ópera séria, que, no entanto, não deixa de ser (uma) bufa; embalada pela tragicomédia de tudo aquilo a que o realizador se sujeita, evidente sobretudo no uso da palavra. Coppola parece ter passado por Platão e Marco Aurélio na Wikipedia, imprimindo ao filme os seus trechos mais genéricos, mas tudo isso faz sentido: é assim que nós falamos e pensamos, em scrolls e em frases sublinhadas. Numa era em que já não é possível fazer as bíblias de Griffith e Murnau – os faróis deste filme – restam-nos os fragmentos que a megalomania dos tempos modernos consegue filtrar. E esse filtro doura tudo, com o mesmo brilho piroso que tentamos impor às nossas vidas higienizadas. Talvez, por isso, o trailer de Megaloposlis possa ser confundido com as Marvels. Contudo, os exercícios dos Nolans e companhia são meios para um espectáculo fanfarrão; Megalopolis é um fim em si mesmo, uma tentativa de superar a própria forma, mesmo que essa nova forma que Coppola almeja seja o esboço de um estouro.

Dizem que, com Trump, o mundo pode acabar, que a noite está prestes a cair – essa noite que domina a maior parte do filme. Coppola mergulha nessa escuridão, traçando os contornos de um colapso iminente, mas, ao mesmo tempo, ergue um desejo improvável: de que as pessoas ainda sejam capazes de dizer, quase por reflexo, como num conto de fadas – uma fábula pastoril – em que tudo se resolve por magia, com um “sim” infantil e desarmado. Como o sofrível Mayor da cidade, que, no final, aceita o convite do inventor para embarcar nesse novo mundo. Não é um gesto de adesão, é antes um salto de fé, rumo a um fórum luminoso da humanidade, onde o amor vence o cinismo; como se fosse possível. Quem nos dera que fosse possível.


Watteau, L'embarquement pour Cythère


-Rodrigo



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