A Rosa do Teatro - tradução de um texto de uma amiga anónima sobre "A Vingança de Uma Mulher", (2012), Rita Azevedo Gomes

 Dois filmes, ambos protagonizados pelo Bill Murray… Lost in Translation e A Vingança de Uma Mulher. No primeiro, Bill Murray, libertino em declínio (interpretado por Bill Murray e chamado “Bob Harris”) conhece uma jovem mulher enigmática com quem partilha um estranho laço. Eles deambulam por Tóquio num estado de “parallel play”, unidos pela sua posição partilhada de forasteiros, turistas, Americanos, gozando, sendo provocativos, sem nunca dar voz aos seus verdadeiros pensamentos. No fim, a experiência de vida do libertino em declínio é reivindicada como benéfica para a jovem mulher. Ele sussurra-lhe palavras misteriosas de consolo, e estas dão-lhe força numa crise. Ele salvou o dia com a sua grande sabedoria. Depois vai cada um para o seu caminho, e nunca mais se reencontram. Uma visão possível do libertino.

Em A Vingança de Uma Mulher, Bill Murray, libertino em declínio (interpretado pelo Fernando Rodrigues e chamado “Roberto”), conhece uma jovem mulher enigmática com quem partilha um estranho laço. Essa mulher, uma prostituta, diz que em tempos passados foi a grande duquesa de Sierra Leone, e o Bill Murray sabe que é verdade, tendo-a visto numa festa há muitos anos. O Bill Murray está sempre a ir a festas, ou em viagens, e já conheceu muitas mulheres. Escreve os seus pensamentos profundos em diários que não publica e gosta de se imaginar – como diz uma das suas admiradoras – “um palácio num labirinto”. Ele orgulha-se do seu mistério, que sabe ser sedutor para as mulheres. Ele perderá o seu orgulho ao longo desta noite com a inseduzível, inalcançável duquesa, que o ultrapassa astronomicamente no que toca a mistério, agonia e paixão – uma estrela negra para a sua lua orbitante.

Nenhuma deambulação (sem ser por memórias), nenhum parallel play (ela irá falar, ele não), e nenhuma posição partilhada (ela está cortada do mundo, horrivelmente sozinha no seu projeto de vingança). O seu único papel é ouvir, testemunhar, pagar a sua tuta e meia de conspurcação no fim da noite. O projeto da sua vida – libertinagem, sedução e conquista – irá ser contrastado com o projeto dela de vingança, a extremidade do seu sofrimento, a pureza do seu amor, do seu ódio.

Esta é uma mulher de determinação formidável, não uma mulher que precisa de uma palavra sussurrada por Bill Murray. Que posso eu fazer por si, pergunta ele, em choque, no fim da sua história. Ela diz: “Veja–”, a mão dele aproxima-se da sua cara, ela olha-a com nojo, esta recua, “– e lembre-se do que vê.” Depois vai cada um para o seu caminho, ele estilhaçado, ela inalterada, para nunca mais se reencontrarem. A partir daqui o projeto dele tornar-se-á num de lembrança estoica, em tributo a esta alma que o envergonhou com a sua enormidade. Ele adotará a sua versão humilde da impassividade de Turre-Cremata – recusando-se a incorporar esta anedota tanto na sua lendária “conversa”, como no seu diário privado. Porque ele não tem sabedoria nenhuma, nem para ser sussurrada. Ele não tem nenhuma perceção única.

Duquesa: “Sou uma Turre-Cremata. Don Cristóbal nunca haveria de suspeitar do que fermentava sob a minha fronte de bronze. Não houve a mais pequena alusão. Nem uma só palavra. O silêncio.”

Narrador: “Do encontro com a duquesa, Roberto não disse nem uma palavra. Guardou-o e fechou-o no canto mais misterioso do seu coração, como se fosse um frasco de um perfume muito raro de que se perderia qualquer coisa se o fizéssemos respirar… Para ocupar o tempo vazio, Roberta valia-se dos últimos vestígios irrisórios de um grande passado: o jogo, a esgrima, a leitura. Ai daqueles que não sabem usar a máscara que escolheram.”

Mantendo a sua vida de hedonismo libertino (mas agora como máscara, num eco da máscara meretriz usada pela duquesa), ele viverá mais tempo que a jovem mulher. Quando ela morre (corajosamente, horrivelmente), ele acaba por ser o único que ouvirá o relato dos seus últimos momentos. Mais três planos: no presente, um cavalo sem sela corre lentamente por frente e para além de um prédio de betão grafitado em direção à câmara. A porta do palco abre-se por trás do cenário, deixando entrar a luz do sol e o som do trânsito, enquanto Bill Murray olha fixamente em choque atordoado. E finalmente vemos os degraus que levam à porta de entrada da meretriz, agora à luz do dia, uma ruína.

palavras irónicas, vazias, triviais do libertino —> palavras dilacerantes, cândidas, explícitas, não-irónicas da duquesa —> silêncio.

vestido amarelo —> vestido preto —> vestido branco.

pássaro de plástico chilreante em cima dum galho num palco de gravação —> pássaro real morto numa rua exterior, pontapeado para dentro do esgoto.

Vale a pena fazer a comparação com A Última Amante (Breillat), também baseado numa história semelhante pelo Jules Barbey d’Aurevilly, que aborda este tipo de cenário (um monólogo sexualmente explícito longo e narrado) num resisto muito diferente - mesmo assim teatral -  mas com uma espécie de estalar quente da realidade aqui deliberadamente evitado, onde gestos são mais frontais, e sons são ouvidos diretamente e sem reverberação contra uma carpete do silêncio. Imagética explícita, sexo real, estaria fora do lugar numa história que se centra num amor puro (alma-a-alma) que nunca foi consumado, e que na verdade não pode ser encenado.

“Acredita que nesse tempo jamais os lábios de Estevão tocaram nos meus, e que um beijo dele pousado numa rosa e depois recolhido por mim bastava para me fazer perder os sentidos”

O beijo de Estevão é transferido através da rosa. Neste filme, os lábios da câmara recebem o beijo do evento através da rosa do teatro

-DTL

Texto Original da Amiga Anónima


E para acompanhar esta tradução, uma frase de Oscar Wilde também traduzida por mim:

"e eu sei que para mim, a quem flores fazem parte do desejo, há lágrimas à espera nas pétalas de alguma rosa."

-Vasco

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